BLOG ORLANDO TAMBOSI
Documentário sobre Cuba rasga fantasias dos devotos de ditaduras. Augusto Nunes para a nova edição da reviste Oeste:
Com
o uniforme de oficial de cordão carnavalesco, um charuto hospedado no
canto da boca, Fidel Castro está de saída do Congresso do Partido
Comunista Cubano promovido em 1975. No poder há 16 anos, o ditador
quarentão está em boa forma: depois de discursar por 20 horas seguidas,
não exibe sinais de cansaço. Só parece intrigado com aquele carrinho de
bebê ao lado de três cinegrafistas que acompanham a movimentação da
lenda em seu apogeu. Fidel se aproxima do carrinho que, em vez de
passageiros da primeira infância, transporta instrumentos indispensáveis
a quem trabalha no mundo do cinema. Mira o jovem desconhecido e
pergunta quem carrega aquilo: ele ou ela? Ele é Jon Alpert, ainda um
novato na arte que o transformaria em celebridade. Ela é Keiko Tsuni,
mulher de Alpert. Câmeras de vídeo digital da primeira geração são
bastante pesadas, explica o marido. Fidel ensaia a retirada e é detido
pelo convite audacioso: “Tem uma mensagem para o povo dos Estados
Unidos?”. Assim começou a primeira conversa entre o jornalista
principiante e o homem que havia dois anos não concedia entrevistas à
imprensa ianque.
O
mais loquaz orador do Caribe ficou uns poucos segundos em silêncio
antes de declamar a mensagem. Louvou as virtudes dos norte-americanos
comuns, elogiou os esforços dos intelectuais e trabalhadores e
desejou-lhes sorte. “Quanto ao governo”, ressalvou, “todos sabem que não
há nenhuma simpatia entre os governos de Cuba e dos Estados Unidos.”
Foi a primeira (e a mais curta) das muitas conversas que teriam nas
quatro décadas seguintes. Em 2016, às vésperas do 90º aniversário do
ditador aposentado, encontraram-se pela última vez na casa de Fidel em
Havana. O anfitrião depauperado autografa o colete de trabalho do
visitante. Agora um sessentão grisalho, Alpert beija o rosto da lenda em
seu crepúsculo. Ele voltaria semanas depois para filmar o sepultamento
do fundador do regime comunista. Ao partir de Havana, levava o material
que faltava para a edição do melhor de todos os grandes documentários
que concebeu: Cuba e o Cameraman, lançado nos EUA em 2017 e incorporado
recentemente ao catálogo brasileiro da Netflix.
Documentaristas
interessados no resgate de períodos históricos vivem derrapando em
roteiros que enfileiram entrevistas cara a cara tão excitantes quanto um
desfile militar na Bolívia. Alpert reconstituiu a trajetória de Cuba
entre os anos 70 e a morte de Fidel amparado num microcosmo composto de
interlocutores selecionados com argúcia e sensibilidade — e dividido em
três núcleos. Os irmãos Borrego são agricultores que aram a terra com
juntas de bois. O negro Luis Amores e seus amigos sobrevivem com
transações comerciais situadas na difusa fronteira que separa a
contravenção do crime. E Caridad tenta resistir ao lado do casal de
filhos à desesperança que começou com a renúncia ao sonho de prosperar
como enfermeira. Os diálogos e imagens resultantes das visitas aos
vértices desse triângulo e das conversas com Fidel fazem de Cuba e o
Cameraman o mais soberbo, tocante, honesto e revelador documentário
sobre a Era Fidel. Graças às sucessivas incursões pela ilha, Alpert se
torna uma espécie de primo norte-americano dos integrantes do elenco e
um amigo temporão do líder revolucionário. Nada disso impede que veja as
coisas como as coisas são e conte o caso como o caso foi. Na primeira
viagem a Havana, era um admirador dos revolucionários triunfantes. A
visita derradeira foi feita por mais um ferido pela decepção. Em nenhum
momento o cameraman emite juízos de valor, opina ou argumenta. O que
mostra dispensa manifestos e discurseiras. Ao longo de 154 minutos, o
palco do drama estaciona no tempo ou piora. Só não mudam os carrões
norte-americanos que sacolejam nas ruas seja qual for o ano, o dia ou a
hora da visita de Alpert.
Sem
barulhos nem berreiros, o documentário implode mitos e crendices
plantados pelos jardineiros do paraíso socialista no Caribe. O sistema
de educação é gratuito e universal, certo? “Gostaria de comer mais”, diz
uma estudante instada a revelar seu maior desejo. Nenhum cubano passa
fome? “Ninguém consegue carne há muitos meses”, lamenta uma mulher na
fila do racionamento ao saber que, naquela semana, sua família teria de
contentar-se com um pão por dia. Num encontro com os Borrego, Alpert
constata que um dos irmãos perdera a voz para o câncer na garganta. Na
cena seguinte, ele conversa no hospital desprovido de remédios onde o
lavrador ficara internado. Assombrado com a aparência e a idade do
instrumento jurássico utilizado na cirurgia, Alpert pergunta ao médico
quanto o governo lhe paga por mês. Vinte dólares, ouve. Desolado, o
documentarista aparece na visita seguinte com um aparelho que, acoplado
ao pescoço, reproduz um som vagamente parecido com a voz humana. A
euforia do agricultor octogenário revela as diminutas dimensões dos
sonhos possíveis.
Em
1975, as gordas mesadas remetidas pela União Soviética espalharam pela
ilha a sensação de que as promessas revolucionárias seriam enfim
cumpridas. A enxurrada de rublos financiou casas populares, novas
escolas, equipamentos hospitalares, medalhas olímpicas, mais comida e
outras razões para animar os intermináveis discursos de Fidel com gritos
de Patria o Muerte. Nos anos 80, prédios em decomposição, a
universalização da falta de água, o sumiço da coleta de esgoto e outras
carências aflitivas prenunciaram mais uma estação tempestuosa. A queda
do Muro de Berlim em 1989 e a dissolução da União Soviética dois anos
depois anteciparam o pior dos invernos. É o único trecho do documentário
que mostra Fidel Castro, um poço de certezas aparentemente inesgotável,
sem saber o que dizer. Em algumas aparições, para espanto da plateia,
vê-se um homem ligeiramente parecido com gente como a gente. Sempre
traduzindo em voz alta para o inglês o que ele próprio acabara de dizer
em espanhol, Alpert filma e narra momentos em que Fidel exibe o peito nu
para provar que não usava coletes à prova de bala, ou garante que não
teme atentados porque só morreria quando chegasse a sua hora, ou
esparrama o corpo pela cama do quarto na Missão Cubana em Nova York,
onde baixara para discursar na Assembleia-Geral da ONU. A bordo do avião
que o trouxera de Havana havia um único cidadão norte-americano. Jon
Alpert, naturalmente.
Cuba
e o Cameraman confirma que o embargo decretado pelos Estados Unidos
causa estragos de bom tamanho, mas infinitamente inferiores aos
provocados pela economia planificada. Somem a cerveja, o rum, o leite, a
carne. Multiplicam-se os exploradores do mercado negro, os traficantes
de drogas, os ladrões, entre os quais os que consumiram em churrascos os
animais que compõem o patrimônio dos Borrego. Camuflada pela ditadura
comunista, a penúria em expansão é escancarada no documentário que, ao
mostrar Cuba como Cuba é, torna bem menos surpreendente a onda de
protestos que agitou a ilha há poucas semanas. Pena que Alpert não
estivesse lá para filmar a verdade torturada por liberticidas sem
remédio. O mais repulsivo dos negacionismos é negar que uma ditadura é
uma ditadura. E não há patrulha mais torpe do que a que tenta silenciar
quem enxerga a nudez do reizinho de estimação.
Essas
torpezas ajudam a entender por que a chegada ao Brasil de Cuba e o
Cameraman foi escondida pela Netflix e ignorada pelos segundos cadernos
dos jornais. No País do Carnaval, os chamados críticos de cinema ficam
com cara de criança que viu Nossa Senhora quando topam com idiotices do
calibre de Democracia em Vertigem. E têm orgasmos múltiplos quando Petra
Costa capricha na voz de quem canta incelenças desde o estágio no
berçário. O documentário sobre Cuba comprova que uma Petra só teria
chances de juntar-se à equipe que o produziu caso se escondesse no
carrinho de bebê. Nesse caso, é provável que Fidel preferisse afastar-se
às pressas. E não teria conhecido Jon Alpert.
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