Se não somos livres de que serve a religião? Por que razão Deus se teria dado a tanto trabalho se não foi para criar seres livres? São questões prementes que a tecnologia nos vai levar a confrontar. André Abrantes Amaral via Observador:
A
edição de fim-de-semana do Financial Times de há oito dias contém um
debate sobre Inteligência Artificial, edição genética, tecnologia e
processamento da informação. Os participantes foram Kazuo Ishiguro e
Venki Ramakrishnan. O primeiro foi Prémio Nobel da Literatura em 2017 e o
segundo da Química em 2009. Por sinal, o último livro de Ishiguro,
‘Klara and the Sun’ (que não li) consiste numa distopia em que Klara,
uma máquina humanóide, é amiga de uma adolescente gravemente doente.
A
troca de ideias entre os dois é interessante pois não é habitual que se
discutam desafios que ainda não sabemos como se vão apresentar. Ambos
levantam questões éticas que contêm a agravante de, quando tal suceder, o
mais certo é que nos encontremos numa situação de não retorno, da qual
poderemos não conseguir fazer marcha-atrás.
A
Inteligência Artificial pode ser extremamente benéfica na medicina e na
ciência, mas também perigosa porque construída através da informação
que lhe dermos. A questão é clara pois o que as máquinas vão pensar terá
por base o que nós pensamos e fazemos agora. As opiniões que temos
presentemente serão o combustível que lhes dará força. Se tivermos em
conta que o que era assente como correcto e verdadeiro há 100 anos já
não é mais; se aceitarmos que a adaptação da nossa forma de pensar aos
novos desafios e às novas realidades faz parte do desenvolvimento
humano, como será quando a inteligência artificial, nas mãos da qual
colocarmos várias e diversas áreas das nossas vidas, não tiver essa
capacidade? A escravatura é hoje fortemente condenável (embora ainda se
pratique em certos países) quando até há poucos séculos era
perfeitamente aceite. É só um exemplo. A pergunta que Kazuo Ishiguro e
Venki Ramakrishnan deixam é a seguinte: será que com a Inteligência
Artificial os nossos filhos e netos conseguirão questionar o que hoje
consideramos indiscutível?
Outro
problema é a edição genética. Se cada um de nós tem uma propensão
genética para certas doenças, algumas destas fatais, por que não alterar
os genes e pôr termo à doença ainda antes do nascimento? A ideia pode
parecer absurda e desumana mas, sendo possível, quem é que não o deseja
para os seus filhos? Quem é que vai recusar essa possibilidade para o
seu filho sabendo que há uma propensão genética na família para o
surgimento de um cancro? O conceito da edição genética pode começar na
alteração do gene que gera a doença, mas rapidamente alastrar-se para
outras áreas da vida. Todos nós somos diferentes: uns mais inteligentes e
outros mais limitados, sendo que a inteligência nem sequer é absoluta:
há os criativos e os que têm um raciocínio matemático extremamente
apurado; os mais empáticos, os mais calados e os mais conversadores, os
mais discretos, os mais leais e os mais flexíveis. Uns são mais altos e
outros mais baixos; há quem tenha propensão para engordar, mas também
quem não ganhe peso por muito que coma. Vamos imaginar que é possível
escolher o tipo de pessoa que o nosso filho pode ser. Quem coloca muito
bem esta questão é Yuval Noah Harari em ‘Homo Deus’. Harari limita-se a
reunir uma série de conhecimentos e desafios que já são colocados por
muitos cientistas. O mérito de Harari é o tê-lo vertido numa prosa
acessível a todos. A ideia de editarmos geneticamente o nosso filho pode
ser escabrosa mas, anos mais tarde, como é que um pai se perdoa a si
mesmo se souber que o seu filho perdeu o emprego para uma pessoa
geneticamente modificada?
Até
é possível que alguns pais resistam a essa tentação e se convençam que
os seus filhos são mais livres que os restantes humanos geneticamente
modificados. É possível. Mas se a genética é assim tão determinante será
que nós somos efectivamente livres ou não passamos de seres cujas
escolhas estão pré-determinadas pelos nossos genes? Será que somos assim
tão livres quanto supomos? Será que já temos a propensão para sermos
politicamente liberais ou socialistas ou é mesmo uma escolha livre de
cada um de nós? Será que uma pessoa escolheu verdadeiramente ser
arquitecta, ou advogada, ou médica ou tudo não passou de uma propensão
genética nesse sentido? Ora, se a genética for determinante a esse nível
para que serve a tão propagada liberdade política, económica, social e
religiosa? Se não somos livres de que serve a religião? Por que razão
Deus se teria dado a tanto trabalho se não foi para criar seres livres?
São questões prementes que a tecnologia nos vai forçar a confrontar.
A
modificação genética pode ter outros efeitos que não meramente
filosóficos, mas mais imediatos. Pode permitir que uma potência militar
crie soldados de primeira linha. Seres humanos mais fortes, mais
resistentes, mais frios, menos emocionais, pessoas que não falham o
tiro, que tomam a decisão fatal na hora certa. Se, por exemplo, a China
for por esse caminho quem somos nós para dizer que os EUA não o devem
fazer? Ou vice-versa? Estas são questões que tanto Harari explana no seu
livro como Ishiguro e Ramakrishnan referem na conversa que têm para o
FT. São escolhas brutais que dentro de alguns anos a humanidade pode ter
de fazer. Ao pé disto a Covid-19 é coisa de meninos.
Há
um outro ponto que julgo que devemos ter em conta: vivemos numa época
de intransigência para com o passado. Presenciamo-la no derrube das
estátuas que representam algo que hoje é condenável e na proibição de
leituras que não vão ao encontro das crenças actuais. Há uma dificuldade
presente em compreender o passado. A questão é que se não conseguimos
compreender o passado, se olhamos para este com o entendimento que temos
hoje, como é que vamos ser capazes de nos preparar para o que vai mudar
no futuro? Se somos intolerantes com as decisões tomadas há cem,
duzentos ou mil anos como é que vamos estar prontos para as que teremos
de tomar dentro de 10, 50 ou 100?
Escolhi
este tema para esta crónica depois de ler o debate no FT mas também
porque hoje é Domingo de Páscoa. Neste dia, o cristianismo celebra a
ressurreição de Cristo como a ressurreição da espécie humana. Ao
contrário do que é correntemente aceite, o cristianismo é
intrinsecamente livre porque pressupõe escolha. A prova está no facto de
só o cristianismo ter permitido o surgimento de um pensamento racional
que o questionasse. O processo levou séculos, mas a génese estava lá.
Ninguém tem resposta para o que aí vem pois nem sabemos bem o que vai
ser. Independentemente disso, o que me parece é que o significado do dia
de hoje pode ajudar na resposta.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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