Com alta tecnologia e sustentabilidade, a cultura da cana-de-açúcar assegura seu papel estratégico na economia nacional. Evaristo de Miranda para a Oeste:
Em
2020, como nunca, o Brasil adoçou a vida da humanidade, com sua
exportação de açúcar. Foram mais de 31 milhões de toneladas. Se fosse
dividido igualmente por todos os habitantes do planeta, esse total
equivaleria a 4 quilos de açúcar por pessoa!
Não
à toa, o mundo nos considera um país doce. Nosso consumo per capita é
da ordem de 52 kg de açúcar/ano, contra uma média mundial de 22
kg/pessoa/ano. Desde muito cedo, a cana-de-açúcar se tornou uma das
principais culturas da economia nacional. E segue assim, mesmo com a
diversificação dos produtos da cana, como mais de 31 bilhões de litros
de etanol, um combustível renovável, capaz de garantir a melhoria da
qualidade do ar nas grandes cidades e uma matriz de transporte mais
limpa. Só com a mistura do etanol na gasolina, desde 2003, o país deixou
de emitir 520 milhões de toneladas de carbono, segundo a União da
Indústria de Cana-de-açúcar.
E
o bagaço da cana, queimado em termoelétricas a vapor, chega a assegurar
entre 13% e 15% da energia elétrica em São Paulo, durante o inverno. Em
2020, a geração de bioeletricidade de cana, para o Sistema Interligado
Nacional, foi de 23 mil GWh. O complemento de energia firme foi
providencial, porque disponibilizado quando a maioria das barragens
armazenava pouca água para as hidroelétricas.
A
doce vocação de ser o maior produtor e exportador de açúcar começou no
século 16, com a introdução do cultivo da cana, após diversas inovações
agronômicas e industriais feitas pelos portugueses. Pela primeira vez na
História, a cana deixou os jardins da Península Ibérica e da Sicília
para campos cultivados, em grande escala, na Ilha da Madeira. Um feito
tecnológico pouco conhecido. De lá, o cultivo migrou às terras
ensolaradas do Brasil tropical.
Desde os primeiros plantios em São Vicente e em Olinda, a cana sempre esteve em expansão. O açúcar produzido pelo pioneiro Engenho de São Jorge dos Erasmos,
implantado por Martin Afonso de Souza e sócios portugueses e flamengos,
já era embarcado nos atracadouros de São Vicente por volta de 1534.
Parte da estrutura desse engenho ainda está preservada e pode ser
visitada.
Nos
anos 1630, o Brasil se tornou o maior produtor mundial. Em 1792 foi
inaugurada a Calçada do Lorena, primeiro caminho pavimentado entre o
planalto paulista e o Porto de Santos. A ferrovia seguiu a mesma rota em
1867. E o primeiro trecho de cais do Porto de Santos foi inaugurado em
1892. O foco era a exportação de café e o açúcar beneficiou-se dessa
logística.
Hoje,
a cana ocupa 10,1 milhões de hectares ou 1,2% do território nacional.
Apesar de ser uma fração tão pequena do país, muita gente ainda fala em
“monocultura” da cana no Brasil. Monocultura, segundo o dicionário
Houaiss, é um sistema de exploração do solo com especialização em um só
produto. Ou seja, quase todo cultivo moderno é uma monocultura. No
entendimento popular politizado, porém, o termo designa predominância de
uma cultura única, de exportação, em toda uma região, sem benefícios
para a população local. Nessa visão anacrônica, a agropecuária
politicamente correta se resumiria apenas à produção diversificada de
alimentos para consumo interno.
Na
França, os cereais ocupam 9,5 milhões de hectares ou 15% do país, com
predominância do trigo. E uma propriedade rural a cada cinco cultiva
videiras. Da mesma forma, em Portugal, a uva ocupa 199 mil hectares, ou
5% do país. No entanto, não se fala em monocultura do trigo ou da
videira em terras francesas ou lusitanas. A “loira cabeleira dos
cereais” é exaltada e reverenciada em toda a Europa, assim como seus
onipresentes terroirs vitícolas. A acusação da monocultura contra o
Brasil não vale para europeus? Aqui se vive de narrativas, distante de
fatos…
Há
tempos o cultivo da cana é um dos mais ecológicos e sofisticados em
tecnologia. As usinas plantam dezenas de variedades, geneticamente
selecionadas e adaptadas aos tipos de solos e calendários agrícolas.
Quem olha de longe vê um enorme canavial homogêneo. Na realidade, são
dezenas de variedades e isso contribui para reduzir a generalização de
pragas, pois os insetos enxergam a diversidade de plantas, sem conseguir
atacar todas. E os produtores ainda praticam o controle biológico em
escala, chegando a pulverizar com aviões os fungos controladores de
pragas, além de produzir bilhões de vespinhas diariamente, nas usinas,
para controlar lagartas.
Tem
mais: a cana preserva o solo e extrai pouco nutrientes, diferente do
feijão, da soja ou do milho. Há quatro séculos se planta cana sobre cana
no Nordeste e as terras seguem produtivas. Com a colheita mecanizada,
uma espessa camada de palha recobre e protege a vida do solo. No
passado, parte dessa matéria orgânica era queimada. Atualmente, São
Paulo eliminou o uso do fogo na colheita e outros Estados seguem o mesmo
caminho.
As
raízes da cana são profundas e fasciculadas. É um dos cultivos com
menos erosão no Brasil. A terra só é arada em intervalos de 5 a 7 anos,
na renovação do canavial. Aí ocorre uma rotação de cultivos, com plantio
de soja, amendoim e/ou adubos verdes. Nas terras dos canaviais, por
sinal, é colhida a maior parte do amendoim paulista. E São Paulo
responde por mais de 90% da produção nacional, estimada em 582 mil
toneladas na safra 2020/2021, segundo a Companhia Nacional de
Abastecimento. O amendoim é plantado por terceiros na renovação da cana.
Essa parceria dos canavieiros com produtores de amendoim assegura renda
extra, aumenta a fertilidade do solo e ajuda a reduzir pragas. Além de
enterrar a noção de monocultura.
A
produção de açúcar redesenhou o mapa demográfico, econômico, político e
cultural do mundo. Herança lusitana, a civilização do açúcar modelou a
alma brasileira e a ela se integrou. No dia a dia, o açúcar espera
pacientemente em mesas de bares e restaurantes, pronto para adoçar o
cafezinho. Invisível, presta serviços a milhares de produtos
agroalimentares: sucos, refrigerantes, congelados, pastas, embutidos,
iogurtes, pães e tantos outros. Está presente em bolos, biscoitos,
frutas cristalizadas, chocolates, bombons, caldas e sobremesas nascidas
no mundo rural. Um dos mais populares aperitivos nacionais esmaga limões
sobre um leito de açúcar, logo recoberto por cachaça, também feita de
cana: a caipirinha.
Do
brigadeiro ao quindim, do doce de coco ao bolo de fubá, do
pé-de-moleque à paçoca, o açúcar reina em festas juninas, aniversários e
aquece a alma de quem o consome, sem ter consciência do trabalho e da
arte para produzi-lo. Como evoca o poeta Ferreira Gullar: “O branco
açúcar que adoçará meu café/ nesta manhã de Ipanema/ não foi produzido
por mim/ nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. Vejo-o puro/ E
afável ao paladar/ Como beijo de moça, água/ na pele, flor/ que se
dissolve na boca…”
Metade
do açúcar embarcado no mundo, em 2020, partiu de portos brasileiros.
Com essa exportação, o Brasil arrecadou US$ 8,7 bilhões. O Complexo
Portuário Santista respondeu por 68% desse volume e é o primeiro no
ranking mundial da commodity. A tendência se mantém em 2021.
O
consumo de açúcar continuará a aumentar devido ao crescimento da
população, do poder de compra, do consumo de alimentos processados
resultante da migração de áreas rurais para urbanas e do consumo de
adoçantes de baixa caloria à base de açúcar, como sucralose. O mundo
ainda precisa de muita doçura e pode contar com o agro brasileiro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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