Temos de aprender a conviver com tudo isso. E vamos deixar bem claro: a vacina, seja ela qual for, não vai acabar definitivamente com a doença. Artigo do professor e médico Carmino Antonio de Souza, publicado pela Gazeta do Povo:
O
mundo deve se preparar para enfrentar novas epidemias sazonais. Logo
virão outras, algumas provavelmente desconhecidas. É o resultado da
opção que o ser humano moderno fez, adotando hábitos e costumes
inadequados, talvez necessários, tais como alimentares com base no
consumo de frango, porcos e gado, alguns consumindo animais silvestres,
amontoando-se em grandes cidades, convivendo em ônibus, trens e locais
superlotados, entre outros costumes que facilitam a contaminação e a
propagação de inúmeros microrganismos tais como vírus, bactérias e
fungos.
Assim,
estamos continuamente expostos a doenças vetoriais, zoonoses, endêmicas
e/ou sazonais. Já enfrentei várias situações como a que estamos vivendo
agora. Trabalhei, como interno ou médico residente, na linha de frente
com pacientes com meningite, na década de 1970 – durante três anos, a
epidemia matou milhares de crianças; com HIV, tentando controlar a
doença através do sangue – e assisti, infelizmente, à morte de quase
metade da população dos hemofílicos por conta da transmissão do vírus
durante as transfusões de hemoderivados; além dos enfrentamentos da
cólera, dengue, zika, chikungunya e febre amarela. Foram experiências
dramáticas, mas que estão ajudando a enfrentar os desafios de agora com o
Sars-CoV-2.
Temos
de aprender a conviver com tudo isso. E vamos deixar bem claro: a
vacina, seja ela qual for, não vai acabar definitivamente com a doença. O
que a imunização contra o coronavírus vai fazer é o que outras vacinas
já fazem com a gripe, com o sarampo e com todas as doenças
imunopreveníveis, ou seja, reduzir o número de pessoas infectadas, os
quadros graves e, certamente o mais importante, prevenir a morte. A
vacina é fundamental para evitar que a doença se complique e tenha má
evolução. Tenho defendido a vacinação com muita insistência. Todas as
vacinas são boas e seguras, não há nenhuma de primeira ou de segunda
classe. Mesmo após a segunda dose, no entanto, a população precisa
continuar usando máscara, mantendo o distanciamento social e a higiene
das mãos com água e sabão ou com álcool em gel, para evitar a
propagação.
Lamentavelmente,
a Organização Mundial da Saúde (OMS) está falhando em relação à
vacinação. A OMS não poderia deixar essa questão tão determinante cair
predominantemente no ambiente dos negócios. Não poderia. Não se deveria
admitir que um país rico comprasse mais vacinas do que precisa para sua
população, enquanto dezenas de outras nações mais pobres ficam sem o
imunizante. Se um único país ficar sem a vacina, todo o esforço mundial
fica comprometido porque uma nova onda, provavelmente com novas
mutações, pode voltar e contaminar o planeta. Corremos o risco de pagar
um alto preço por isso. Está faltando um trabalho de organização e
harmonização dos recursos por parte de organismos multilaterais para
garantir o acesso universal à vacina. A vacina é um bem público.
No
caso do Brasil, ainda há alguns fatores negativos que prejudicam a
população em geral: a falta de um eficiente comando central para a
compra e distribuição da vacina, a politização em torno do assunto e as
nefastas campanhas de negacionismo, estas também presentes em países
desenvolvidos.
O
mundo foi incauto nesse processo. Por duas vezes o coronavírus já tinha
dado sinais de que causaria uma pandemia. No início da década passada,
com a denominação de Sars-CoV-1, começou em Hong Kong e foi para a
Europa e Canadá. Felizmente, foi contido. Depois, com o nome de Mers,
apareceu no Oriente Médio. Nenhum destes dois episódios foi capaz de
causar uma pandemia, mas eu diria que isso não aconteceu por um triz.
Isso porque houve um bloqueio, um alerta muito vigoroso. E isso não
aconteceu com a Covid-19.
Houve
um retardo do alerta tanto pelas autoridades chinesas como pela OMS. Se
a pandemia tivesse sido declarada precocemente, pelo menos um mês
antes, teríamos fechado mais fronteiras e diminuído o fluxo de pessoas.
No caso brasileiro, não teríamos autorizado o carnaval. É muito curioso
que a primeira notificação do vírus no Brasil tenha sido anunciada na
Quarta-Feira de Cinzas de 2020.
Um
problema adicional que vai aparecer nos próximos anos é consequência da
interrupção dos diagnósticos, importantes para salvar vidas. Milhares
de exames deixaram de ser feitos, como Papanicolau, mamografia,
colonoscopia, tomografia para câncer de pulmão e PSA para câncer de
próstata, entre outros.
No
caso das doenças crônicas, o atraso na ida ao médico com medo da
pandemia também vai gerar agravamentos – arrisco dizer que isto já
esteja ocorrendo, mas ainda não contabilizamos. E não sabemos durante
quanto tempo conviveremos com “dois sistemas de saúde”: o específico
para a Covid-19 e o que cuida dos demais doentes. Teremos um ano
bastante difícil e desafiador. Espero que tenhamos lucidez e compromisso
público para superá-lo da melhor maneira possível.
Carmino
Antonio de Souza é professor titular da Unicamp, diretor da Associação
Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) e
conselheiro da Fapesp, ex-secretário de Estado de Saúde de São Paulo e
ex-secretário da Saúde de Campinas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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