À margem da carnificina virtual dos gigantes da internet, novas redes miram grupos menores e mais participativos. Dagomir Marquezi para a nova edição da revista Oeste:
Redes
sociais são definidas pela Enciclopédia Britânica como “uma comunidade
on-line de indivíduos que trocam mensagens, repartem informações e, em
alguns casos, colaboram em atividades conjuntas. Em seu melhor aspecto,
uma rede social funciona como uma colmeia de criatividade, com usuários e
desenvolvedores alimentando o desejo de cada um de ver e ser visto”.
Parece uma definição bem inocente para os tempos de arranca-rabo que
estamos vivendo. Mas foi para unir que elas surgiram.
A
primeira rede social de verdade foi o SixDegrees, criado em 1997 e que
três anos depois já tinha 3 milhões de usuários. Em 2003, veio a febre
do MySpace. Em 2004, foi lançado o Orkut, que conquistou especialmente
brasileiros e indianos.
Ainda
em 2004 aconteceu o Facebook. Era originalmente uma rede destinada a
universitários, mas se expandiu até alcançar o número atual de 2,2
bilhões de usuários. No início era tudo alegria. A gente localizava o
colega de faculdade que não via fazia décadas, o primo que emigrou para o
Canadá, e assim por diante. As pessoas se cumprimentavam no
aniversário, curtiam as realizações dos amigos, postavam fotos de seus
pets e filhos, davam dicas de séries e filmes.
Para
muitos, talvez a maioria, as redes continuam tendo essa função inocente
e construtiva. Mas houve o momento em que uma parte do ciberespaço foi
consumida pela fúria. Alguém postou algo como “Eu apoio o candidato X”. E
alguém respondeu: “Você é um fascista reacionário racista nojento e eu
quero que você morra!”.
O
debate político-ideológico era inevitável em redes gigantes e abertas
como o Facebook e o Twitter, que incentiva o diálogo entre os usuários.
Mas o conflito fugiu a qualquer controle. Pessoas cordatas, civilizadas
na vida pessoal, revelaram um lado sinistro quando escondidas atrás de
seus teclados e smartphones.
Ofensas
começaram a voar todos os dias de um lado para o outro. Amigos brigaram
para sempre. Famílias ficaram irremediavelmente divididas. Usuários
passaram da simpatia política para a militância cega. E daí para o
fanatismo feroz e descontrolado.
O
jornalista britânico Ian Leslie tratou do assunto em seu recém-lançado
livro Conflicted. Ele diz que precisamos evoluir para um estado de
“desacordo produtivo”, em que as diferenças podem ser toleradas e até
servir para a evolução das partes em conflito. E lembra o início das
redes sociais, quando se teorizava que, “quanto mais pessoas forem
capazes de se comunicar com outras, mais amigáveis e compreensivas elas
se tornarão”.
Outro
jornalista, James Marriott (do The Times), escreveu a resenha de
Conflicted e considera Leslie otimista demais. “A natureza humana não
funciona assim”, escreve Marriott. “Conectados em larga escala, humanos
tendem para a fúria — por meio do linchamento por gangues, teorias da
conspiração, polarização política, humilhação pública e posts brutais.”
Para
Marriott, existe uma lógica cruel alimentando essa guerra. “Companhias
como Twitter e Facebook entendem que o debate público pode ser
monetizado e seguem a regra de uma simples equação: quanto mais furiosos
ficamos, mais nos envolvemos. Quanto mais nos envolvemos, mais
publicidade nós vemos. Quanto mais publicidade vemos, mais dinheiro
jorra no Vale do Silício.”
Alguns
usuários dedicam-se em tempo integral a debater política nas redes.
Conheço pessoas que nunca publicaram um post que não fosse defendendo
uma ideologia ou atacando algum político de que eles não gostavam.
Saíram da crítica obsessiva para a ofensa. E daí para sugestões de
assassinato ou coisas piores. Vale tudo pela “causa”.
Na
teoria psicanalítica de Sigmund Freud, além do id (nosso “instinto
animal”) e do ego (que dá uma forma socialmente aceitável aos nossos
impulsos), existe o superego. A Enciclopédia Britânica define o superego
como o elemento mental que “proporciona os padrões morais pelos quais o
ego opera. As críticas, proibições e inibições do superego formam a
consciência da pessoa”. Segundo Freud, o superego se forma durante os
primeiros cinco anos da vida de uma pessoa. A gente diz “Odeio minha
irmã!” e nossos pais ou responsáveis nos corrigem: “Falar isso é feio!”.
As
redes sociais desenvolveram um mundo paralelo livre do superego. É como
se as leis do mundo real não valessem na internet. A estrelinha de
novelas declara ao mundo que quer raspar a cara do presidente da
República no asfalto quente. O ato não tem nenhuma consequência — além
de provavelmente aumentar seu prestígio no local de trabalho.
E
então um colunista publica uma matéria sugerindo que o presidente
deveria morrer. E esse universo mental primitivo em que o id está à
solta em nome de uma causa transborda das redes digitais para o mundo
“real”. Do outro lado, alguns defensores do presidente reagem com a
mesma linguagem furiosa e ameaçadora. E o clima fica irrespirável como
em uma briga de torcidas organizadas.
As
maiores redes sociais às vezes parecem a 1ª Grande Guerra — exércitos
em trincheiras trocando tiros sem que nenhum dos lados ganhe ou perca
território. Mas o conflito atingiu um novo patamar. Não são apenas os
usuários de redes sociais que brigam entre si. As próprias plataformas
entraram na guerra.
Twitter,
Facebook e Google estão hoje dominados por essa ordem de “combater
extremistas” — desde que sejam de direita. Chegaram a ponto de destruir
uma rede rival, o Parler. Taparam os olhos para o que faziam
organizações violentas e totalitárias como Black Lives Matter e Antifa.
Mas não admitiram a invasão do Capitólio pelos simpatizantes do
ex-presidente Donald Trump. Tiraram o Parler do ar e do catálogo de
aplicativos do Google e da Apple Store. Agiram como um Estado policial.
Agora
o Parler voltou à internet de maneira ainda precária. Sob nova direção,
sem aplicativo e com a promessa de permanecer “apartidário”. Duas
outras redes surgiram para o mesmo público não esquerdista — o CCore (ou
Conservative Core) e o Gab.
São
redes no modelo do Twitter — posts pequenos, pouco destaque aos
comentários. Apesar do nome ideologicamente limitador, o CCore é a rede
mais arejada entre as três. O Parler é especialmente árido — um
bombardeio constante de posts ideológicos e focados no noticiário de
Washington (ou Brasília). O que tende a expelir naturalmente quem não
pensa exclusivamente em política.
Existe
saída para essa situação? Abandonar as redes é uma. Conheço muita gente
que tentou. Mas ninguém que eu saiba conseguiu se afastar da
turbulência por muito tempo. Estamos num processo de grandes
transformações. As grandes redes atuais mais cedo ou mais tarde farão
parte do passado, como o Orkut e o MySpace.
O
mercado sabe disso e lança novas gerações de aplicativos. São tantos
que fica difícil acompanhar todas as novidades. As novas redes tendem a
ser mais específicas, evitando o generalismo do Facebook — e seus
inevitáveis conflitos. Além de se arriscar em novas possibilidades
formais. Uma das novidades mais badaladas é o ClubHouse, uma rede social
ainda muito restrita que funciona unicamente por voz.
Novas
redes miram grupos menores e mais participativos. O TuitchTV e o
Caffeine transmitem jogos ao vivo para gamers. O Vero é um Instagram
mais inteligente. Medium, Wattpad, Substack e LiveJournal são voltados
para quem gosta de escrever. O MeWe mistura elementos de diversas redes e
prende pela funcionalidade.
O
DeviantArt é voltado para usuários ligados às artes gráficas. O Tribe
reúne empresas e consumidores. O Quora e o TheDots oferecem a troca de
informações entre profissionais. O Hello junta pessoas de acordo com
seus interesses. O GoodReads, pelos livros que estão lendo. O
ReverbNation e o SoundCloud são redes para músicos.
Eu
estou em quase todas as redes. Quero vender meus livros, divulgar meu
trabalho, repartir as fotos que tiro, prospectar possibilidades
profissionais, encontrar pessoas com as quais compartilho interesses — e
eventualmente dar minha opinião sobre os acontecimentos. Mas não
acredito em mudanças profundas motivadas por número de curtidas ou
visualizações.
Em
minha opinião, existem formas mais efetivas para conseguir essas
mudanças — por meio de legisladores, órgãos de governo, agências
oficiais, organizações de fiscalização, fundações, canais de contatos
das empresas etc. Dá mais trabalho que digitar um post raivoso. Mas tem
maior chance de funcionar.
Eu
não brigo na internet. Se surge na rede alguém que ofende meus
princípios, eu bloqueio. Não preciso dessa pessoa, ela não precisa de
mim. Nosso conflito é inútil. O mundo é vasto e cheio de possibilidades.
Vou procurar minha turma.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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