Mario Sergio Conti
Folha
É parca a literatura acerca da peste iniciada há um ano. Era de se esperar. A catástrofe só piora, seu pico parece se afastar, não chegar nunca. Será preciso tempo, reflexão e fantasia para se obter relatos que revolvam a tragédia, que avaliem o peso de milhares e milhares de mortes, de milhões de vidas viradas de cabeça para baixo —como a sua.
A literatura dá forma a sentimentos difusos, a pensamentos sem nome, e faz assim com que se perceba o que os indivíduos e a espécie são. Por isso a pandemia reavivou o interesse por “Decameron”, de Boccaccio, “Um Diário do Ano da Peste”, de Defoe, “A Peste”, de Camus.
MODELO DE KAFKA – Mas há um autor que, sem abordar expressamente calamidades bombásticas, diz muito dos dias que correm —dias de enclausuramento individual e anomia social. Talvez porque tenha escrito entre duas carnificinas, a Primeira e a Segunda Guerra. Ou porque, no interregno da grande guerra civil de 1914 a 1945, viu o que viríamos a ser: Kafka.
Numa prosa de tabelião, ele anteviu o sem sentido, o mal-estar permanente e sem escape no qual nos precipitamos. A ladeira impele a pessoa rumo ao muro no qual baterá a cara e cairá —e a bota do ogro lhe pisará para sempre o rosto. Não obstante, vamos em frente.
“Pequena Fábula” é um microconto de três frases que Kafka escreveu ao redor de 1920. Às vésperas da morte, pediu ao amigo Max Brod que o destruísse, assim como todos os seus inéditos. Publicado postumamente, foi traduzido por Modesto Carone e está no livro “Narrativas do Espólio”.
EI-LO, NA ÍNTEGRA – “Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via a distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.”
“Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e o devorou.
É uma fábula porque nela os bichos falam. Mas não tem nada de Esopo ou La Fontaine, não se encerra com uma lição de moral. Os contos e romances de Kafka nunca chegam a conclusões. E estão cheios de animais, vários inexistentes —e que aos poucos se descobre não serem humanos.
A METAMORFOSE – O mais ilustre deles é o “inseto monstruoso” de “A Metamorfose”, no qual Gregor Samsa se vê transformado ao acordar. Sem porquê nem quando, virou um bicho marrom e cheio de pernas, desprezado pela própria família. Desumanizado, morrerá desentendido de si mesmo.
Os personagens da “Pequena Fábula” são híbridos que falam como humanos e agem como animais. O “ah” inicial combina surpresa e constatação. Ele inaugura e sintetiza as oposições binárias que percorrem o curto diálogo de uma ponta à outra: estreito/vasto, paredes/canto, direita/esquerda, princípio/último, rato/gato.
Amálgama de felicidade e medo, a correria do rato serve de figura para os dias de hoje, nos quais a peste nos empareda progressivamente. O que era vasto se estreita até desembocar no canto onde duas alternativas aguardam o rato, a ratoeira ou o gato. Elas são na verdade uma —mutilação e morte.
TERCEIRA ALTERNATIVA – Há ironia na terceira alternativa, oferecida pelo gato ao rato: é só mudar de direção, e em seguida o devora. O final surpreende, mas não chega a ser engraçado porque Kafka, realista, faz com que o mais forte triunfe inapelavelmente. Seu gato e seu rato são o oposto de Tom e Jerry.
O desenho animado é uma repetição obsessiva de agressões. Tom e Jerry normalizam a violência subjacente à vida real. Educam as crianças para o exercício e a submissão à violência. Ensinam a mesclar força e esperteza. Festejam o frenesi de um mundo movido a tiros e socos sem fim.
Kafka, não. Sem ilusões, incorpora tal mundo à arte. É por isso que sua literatura retrata tão bem a crise provocada pela peste. Sobretudo no Brasil. É como ratos que corremos entre paredes que convergem e nos conduzem ao canto onde o golpe nos aguarda. Um golpe político, coletivo e existencial —que nos animalizará de vez.
COMO MUDAR DE RUMO? – Nossa única chance é mudar de rumo. Mas como, se a letargia é geral? Em “Uma Mensagem Imperial”, a resposta imaginada por Kafka não chega nunca a seu destinatário, que “sonha com ela quando a noite chega”.
Em “Na Galeria”, o espectador, inerte diante das desgraças à sua volta, afunda “num sonho pesado, chora sem o saber”. A um amigo, Gustav Janouch, Kafka disse: “Existe muita esperança, mas não para nós”.
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