Reagan não era um intelectual, mas era inteligente; não era um pensador, mas pensava. De resto, os intelectuais nem sempre são inteligentes e muitos não chegam sequer a pensar. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Quando
Ronald Reagan se tornou Presidente dos Estados Unidos, em 20 de Janeiro
de 1981, da esquerda ao centro, dos comunistas radicais aos moderados
bem-pensantes, todos irromperam em indignados clamores: Reagan era um
actor secundário de segunda, um ignorante, um radical de direita que ia
dar cabo do mundo. Clamores semelhantes aos que receberia Donald Trump
em 2017, também ele um mero actor e produtor de reality shows, um
ignorante, um radical de direita, pronto a dar cabo do mundo. A História
tende a repetir-se, ainda que sempre com diferenças importantes.
Mas
como Bismarck ficou irremediavelmente ligado à unidade alemã e
Churchill à vitória aliada na Segunda Guerra Mundial, Reagan foi o homem
do fim da Guerra Fria e da derrota da União Soviética e do Comunismo.
Embora o desfecho final – a queda do Muro de Berlim em 1989 e a
dissolução da URSS no Natal de 1991 – tivesse acontecido já com George
H. Bush, a política e a estratégia que levaram à queda da URSS foram de
Reagan, da Administração Reagan, da revolução conservadora de Reagan.
Esta
revolução conservadora foi um movimento de ideias, um movimento de
intelectuais e pensadores preocupados com o progresso do comunismo no
mundo e com os avanços da nova esquerda radical nos Estados Unidos. Era
preciso combater e vencer esses dois perigos.
Reagan
não era um intelectual, mas era inteligente; não era um pensador, mas
pensava. De resto, os intelectuais nem sempre são inteligentes; e muitos
não chegam sequer a pensar, atarefados que estão a seguir o guião de
acesso ao subsídio ou à sobrevivência mediática e académica. Há dias,
vimos uma doutora em Ciências Sociais provar “cientificamente” a
inocência do Sr. Mamadou Ba, enquanto esclarecia o povo, também
“cientificamente”, que só os brancos podiam ser racistas. Porquê?
Porque, ao que parece, “a Ciência” terá já cativado a palavra “racismo” e
bloqueado o conceito para seu uso exclusivo ou dos seus iniciados – a
saber, “todo um sistema económico, político e social branco e opressor”.
Fora desta lapidar definição, não serão, evidentemente, permitidos
desvios.
Mas
Reagan, não sendo um intelectual, era inteligente e pensava. Vinha de
uma família de pequena classe média de Fulton, Illinois, onde nasceu, em
6 de Fevereiro de 1911. Pai católico com problemas de alcoolismo, mãe
religiosa, dos Discípulos de Cristo. O pai era um entusiasta do New Deal
e o jovem Ronald nunca esconderia a sua admiração por F. D. Roosevelt. O
liberalismo do pai, lembraria depois o filho, ia ao ponto de não os
deixar ver o clássico de Grifitth, Birth of a Nation, por pactuar com o
racismo. A mãe era uma activista religiosa, dedicada a causas sociais e
visitadora de presos e enfermos.
Depois
de concluir estudos no Eureka College, Illinois, Reagan foi locutor e
comentador desportivo, começando aí a sua carreira de grande
comunicador. Em 1937 foi à Califórnia e a Warner Brothers contratou-o
para um papel secundário. E durante 20 anos foi actor.
Nos
seus anos de Hollywood, e como presidente da Screen Actors Guild,
apanhou os inquéritos às “actividades anti-americanas” da HUAC (House of
Un-American Activities Comitee), uma comissão criada sob outro nome em
1918 para investigar actividades pró-alemãs e pró-bolcheviques. Em 1947,
Reagan foi chamado a depor como testemunha, afirmando-se então um “New
Deal Liberal”.
Para entender a acção da HUAC é bom tentar perceber o espírito desse tempo (exercício que parece estar a cair em desuso).
A
guerra contra Hitler tinha tornado os Americanos aliados dos Soviéticos
e F.D. Roosevelt, à vontade no seu estatuto patrício, permitia-se achar
uma certa graça ao “Uncle Joe Stalin”. Para parte das elites
intelectuais e artísticas de Hollywood, os comunistas eram os idealistas
dos romancistas do século XIX, russos, franceses e ingleses, e o
comunismo uma utopia generosa, uma espécie de “Sermão da Montanha”
laicizado. Houve vários filmes simpáticos para com a URSS, como Mission
to Moscow, de Michael Curtiz, e Song of Russia. Não se sabia muito – ou
não se queria saber – dos crimes e massacres da revolução e do regime
soviético; ou então atribuíam-se à maldade de Estaline e dos seus
sequazes, que teriam corrompido um sonho que permanecia válido. Assim, o
clima dominante no meio progressista de Hollywood era ainda o
“antifascismo” e a HUAC – e depois McCarthy – eram vistos como
para-fascistas.
Só
com o golpe de Praga e as notícias do Gulag e das Purgas – e com casos
de espionagem, como o dos Rosenberg – a opinião pública começou a
acordar para a realidade do comunismo real, do terror policial e dos
campos de concentração. Mas, nessa altura, Mao-Tse-Tung ainda era
apresentado ao público americano por Edgar Snow como “um reformador
agrário” que combatia os corruptos senhores da guerra e da terra do
Kuomintang.
Truman
e o National Security Act iam mudar as coisas. E Hollywood, a “Máquina
dos Sonhos”, não devia trabalhar para o inimigo – daí os inquéritos. Mas
mesmo considerando o carácter inquisitorial e até o oportunismo e o mau
carácter de alguns dos conselheiros de McCarthy (financiado e apoiado
publicamente pela família Kennedy), a quantidade de grandes talentos
perseguidos pela HUAC e a qualidade da perseguição não podiam
comparar-se, nem remotamente, à sorte dos não-comunistas na URSS.
Hollywood, nos anos 50, tinha uma produção muito voltada para a apologia do Cristianismo e dos valores judaico-cristãos, nas grandes produções bíblicas de Cecil B. DeMille, e um forte cunho identitário americano nos westerns da dupla John Ford-John Wayne. E entre 1948 e 1954 houve três ou quatro dezenas de filmes declaradamente anticomunistas, desde uma reposição, em 1947, da fabulosa comédia da MGM Ninotchka, de Ernst Lubitsch, com guião de Billy Wilder e Greta Garbo como protagonista, até Peking Express e The Atomic City, da Paramount.
Assim,
na Guerra Fria, na primeira Guerra Fria, a grande massa dos democratas e
dos republicanos era anticomunista e não era grande a diferença
ideológica entre os dois partidos – ainda que depois da morte de
Estaline e da revelação pública dos seus crimes por um dos seus
cúmplices, Kruschev, a Guerra Fria tivesse arrefecido. É que sem
Estaline, o comunismo tornava-se quase benigno, passada que estaria a
fase do terror. Sintomaticamente, em 1960, Daniel Bell publicava The End
of Ideology: on the Exhaustion of Political Ideas in the Fifities.
Mas
com os Kennedy, com os Direitos Civis, com a Guerra do Vietname, a
ideologia e a política voltavam à América. E a radicalização à esquerda
trouxe uma reacção patriótica e conservadora à direita.
A conversão
A
transição e migração político-partidária de Reagan dá-se durante os
anos 50. Em 1962 é já oficialmente republicano e em 1964 apoia Barry
Goldwater, o candidato que teve então uma das maiores derrotas da
história eleitoral dos EUA, frente a Johnson. Mas com a derrota,
Goldwater acabaria por trazer uma novidade à direita americana – a
necessidade de construir um pensamento alternativo, para que, na luta
política e cultural, se pudessem combater ideias com ideias. Daqui
nascia a revolução conservadora, nas suas três linhas e famílias – o
conservadorismo dos valores cristãos; o anticomunismo e o patriotismo
americano; e uma libertação da economia e da sociedade da burocracia
federal.
Reagan
fora eleito governador e governara a Califórnia com sucesso. Em 1967,
perante uma manifestação anti-Vietname, em que manifestantes de gestos
lânguidos e olhar alienado seguravam cartazes que diziam “Make love not
war”, o então governador terá comentado: “Those guys look like they
can’t make either of both”. É este governador da Califórnia que virá a
ser o instrumento, o porta-voz, da “revolução conservadora”.
Mas
vale a pena ver as circunstâncias em que é eleito. No rescaldo da
presidência de Jimmy Carter, era geral a convicção de que o Ocidente
estava a perder a Guerra Fria. A derrota do Vietname levara toda a
Indochina, com excepção da Tailândia, a ser dominada pelo comunismo, com
os horrores dos Khmers Vermelhos no Camboja. A descolonização
portuguesa também significara um avanço do comunismo em África; na
América Central, os comunistas tinham tomado a Nicarágua e, na Ásia, o
Afeganistão. O Xá do Irão fora derrubado em 1979 e os revolucionários
iranianos tinham sequestrado o pessoal da embaixada americana em Teerão.
A operação de resgate falhara miseravelmente.
É
a partir deste quadro que se pode e deve entender a revolução
conservadora de Reagan, que vai encontrar uns Estados Unidos
internacionalmente debilitados e a economia americana com uma inflação
de 13,5 % e sérios problemas de abastecimento energético; uma economia
em stagflation, isto é, combinando contracção e inflação.
Reaganomics: um liberalismo com limites
Reagan
avançou no campo económico com uma política de corte de impostos – de
70% para 50% nos escalões mais elevados. Estes cortes foram aprovados
pelo Congresso em 1982 e a economia americana cresceu 4,5% em 1983, 7,2%
em 1984 e 4,5% em 1985. O desemprego cresceu primeiro para cerca de 11%
em 1982, mas baixou para 7% em 1984. A chamada Reaganomics, baseada na
supply-side, assentava na ideia de que a perda de rendimento fiscal para
o Estado na primeira fase do corte de impostos seria compensada pelo
crescimento da economia que alargava consequentemente a massa
colectável. Outras medidas foram tomadas no sentido de aliviar a
regulamentação do sector bancário. Mas as áreas da saúde, da segurança e
do meio ambiente continuaram reguladas e houve um incremento
proteccionista em relação às importações. A inflação também foi
combatida, passando de 13,5% em 1980 (último ano de Carter), para 10,3%
em 1981, 6,1% em 1982, e menos de 5% nos restantes anos da Administração
Reagan.
O
“liberalismo económico” de Reagan estava claramente condicionado pela
razão de Estado e pela Segurança Nacional e longe de cortar despesas do
Estado em matéria de Defesa, o Presidente subiu o orçamento de Defesa em
35%.
Toda
a sua política liberal na economia destinava-se a fortalecer os Estados
Unidos para resistir à União Soviética, financiando o rearmamento
militar e forçando a URSS a fazer o mesmo.
A revolução conservadora
Reagan
quis também repor na política interna americana uma ética conservadora
baseada nos valores cristãos, patrióticos e familiares. Desde os
estrategas da Heritage Foundation, aos militantes evangélicos da Moral
Majority, Reagan não desiludiu a direita americana. A sua iniciativa
liberal não embarcava num liberalismo desregulado ou regulado
exclusivamente pelos “mercados” e muito menos num liberalismo
individualista quanto aos valores. Também por isso, foi buscar o
eleitorado moderado e muitos “blue collars” patriotas, desiludidos com
os democratas. E tal como Thatcher, encontrou e enfrentou sindicatos
muito poderosos. Foi memorável a sua batalha com o Sindicato dos
Controladores Aéreos.
Assim,
no Reaganismo, o liberalismo económico nunca foi um dogma ou um fim em
si, mas antes um meio para restabelecer a força e a vitalidade da
sociedade americana, para melhorar a condição dos Americanos e, acima de
tudo, para combater a União Soviética e tudo o que representava.
Num
país em que, nos anos oitenta, a convicção e a prática religiosa eram
muito superiores às da Europa, Reagan pegou nos temas da direita
religiosa e conservadora – foi pela oração nas escolas e contra o aborto
e a eutanásia. E a mobilização dos cristãos seria crucial para a
vitória esmagadora na reeleição de 1984, em que ganhou em 49 dos 50
Estados.
O
programa da New Right que o Presidente trouxe para Washington, quer
através das nomeações para a Administração, quer através da agenda
política, trazia também já uma refundação do Partido Republicano,
misturando cristãos evangélicos, católicos, operários, classe média,
democratas desiludidos com a deriva radical no Partido Democrata,
empresários, intelectuais e jornalistas nacionais-conservadores. E
Reagan passava as ideias da direita patriota e conservadora de um modo
agradável e tranquilo – nos antípodas do modo polémico e agressivo de
Donald Trump.
A
repercussão mais importante da sua Presidência terá sido, sem dúvida, a
surpreendente vitória na Guerra Fria: a determinação americana de fazer
uma corrida aos armamentos e de criar dificuldades aos soviéticos nas
suas “áreas de influência” – no Afeganistão, na Nicarágua, em África –
acabaria por trazer para o poder, em Moscovo, Gorbachev. Para enfrentar
os Estados Unidos, Gorbachev precisava de tornar a economia soviética
mais competitiva mas, ao contrário do que fariam os chineses, achou que,
para isso, precisava de liberalizar o sistema político. Ora o sistema,
porque era baseado no medo, não aguentava brechas nem liberalizações. A
derrota no Afeganistão (o Vietname soviético) e a baixa dos rendimentos
do petróleo (W.B. Casey, director da CIA, convenceu os sauditas e pôr
mais petróleo nos mercados, afundando o preço da grande commodity
soviética) desmantelaram a ideia da invencibilidade soviética e levaram à
bancarrota as finanças russas. Os regimes políticos são um todo – dizia
Montesquieu – e quando se governa pelo terror e pelo medo, mexendo-se
no medo e no terror, o sistema desmorona-se.
No
Reaganismo, os princípios morais, os valores, não eram liberais. O
patriotismo, o espírito de fronteira, o anti-comunismo e o
conservadorismo dos costumes foram essenciais. E se libertar a economia
para a tornar mais eficaz contou muito, também contou muito que fosse a
mesma economia sempre posta ao serviço de princípios e objectivos
nacionais.
É
nesse sentido que deve ser considerada a acção de Ronald Reagan,
assente no primado dos interesses americanos, dos princípios éticos do
cristianismo, do desenvolvimento nacional e da prosperidade dos
cidadãos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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