O caminho para trocar o presidente por um outro não é valer-se do submundo da lei criado em Brasília pelo STF. J. R. Guzzo, via Oeste:
A política brasileira de hoje tem apenas uma questão de verdade: o
esforço para impedir que as eleições presidenciais de 2022 aconteçam
como está previsto no calendário legal ou, mais exatamente, para não
permitir que o atual ocupante do cargo seja um dos candidatos. Seus
adversários, de todas as naturezas e de todos os cantos da vida
política, não falam abertamente que querem isso. Mas passaram a admitir
em silêncio, cada vez mais, que será preciso encontrar alguma pirueta
legal para se livrarem com 100% de certeza daquele que, em sua opinião, é
o causador de todos os grandes problemas que o Brasil tem hoje. Se nada
for feito e as eleições correrem normalmente, acreditam eles, Jair
Bolsonaro vai acabar ganhando — e mais quatro anos com o homem no
governo, além dos dois e meio que ainda tem pela frente em seu primeiro
mandato, é algo que “o país não aguenta”.
E por que não aguentaria? Porque o consórcio político do tipo
xis-tudo que se formou contra o bolsonarismo, sob a liderança e a
condução do Supremo Tribunal Federal, não aceita a ideia de perder seu
futuro — ou seja, de passar os próximos seis anos e meio, e sabe lá
quantos mais depois disso, vivendo fora do governo. Como não quer
Bolsonaro, nem as consequências de Bolsonaro, decidiu que o Brasil
também não quer. As palavras-chave em sua campanha são “democracia”, ou
“defesa da democracia”. Resolveu-se que o atual governo é incompatível,
simplesmente, com a manutenção de um regime democrático no Brasil.
Nessas condições, definidas unicamente por eles mesmos, os condutores do
bonde anti-Bolsonaro decidiram que têm o direito de romper com as leis
hoje em vigor, pelas quais o presidente deve ficar em seu cargo até 1º
de janeiro de 2023 e pode concorrer à reeleição, em nome de um
“interesse maior” — a salvação da democracia e da pátria.
Nessa tentativa de depor Bolsonaro antes que ele tenha a oportunidade
de ganhar uma segunda eleição está valendo quase tudo. O presidente não
poderia ficar em seu cargo (na verdade, nem deveria ter assumido)
porque teria se beneficiado das fake news, ou de “notícias falsas”, para
se eleger em 2018. Teria de ir embora, também, por algum dos seguintes
motivos: praticou crime “contra a administração pública” ao demitir o
ex-ministro Sergio Moro, apoia “movimentos antidemocráticos” e aceita
seu apoio, nomeou Abraham Weintraub para ministro da Educação, escondeu
“o Queiroz”, não usa máscara contra o coronavírus, conduz o Brasil ao
genocídio, não obedece à ONU, não respeita as “instituições” e por aí se
vai. Tudo serve. É o que o público vê, todos os dias, no noticiário que
lhe jogam em cima. O sujeito oculto da frase, em qualquer das denúncias
que aparecem, é sempre o mesmo: “Esse Bolsonaro não pode ficar”.
Não haveria problema algum para a saída do presidente se seu governo
fosse realmente o desastre absoluto apresentado pela mídia, os
“formadores de opinião” e os artistas da Rede Globo. Se o governo é tão
ruim assim, a população deveria estar mais do que cheia dele, não é
mesmo? É dado como fato definitivo, provado por “pesquisas de opinião”,
que “70%” dos brasileiros reprovam Bolsonaro e seu governo. Nove
analistas em dez, pelo menos, garantem que este governo “acabou”: vive
trocando de ministro, não é aprovado pelos presidentes da Câmara dos
Deputados e do Senado Federal, tem uma imagem horrível na “mídia
internacional”, não tem força no Congresso, e assim por diante. Então:
se é assim mesmo, está tudo mais do que resolvido. É só esperar mais um
pouquinho, até outubro de 2022, fazer as eleições como a lei manda fazer
e 70% dos eleitores vão derrotar os 30% de bolsonaristas que sobram.
Só que não é assim. O condomínio anti-Bolsonaro, com certeza, acha
que não é — por isso mesmo, e por nenhuma outra razão, quer montar uma
trapaça com cara de “solução legal” para tirar o presidente do jogo. Os
que consideram Bolsonaro uma calamidade para o Brasil têm, obviamente,
todo o direito de pensar assim; é possível, até, que estejam certos. Mas
o caminho para trocar o presidente por um outro de seu agrado não é
valer-se do submundo da lei criado em Brasília pelo STF, com a
cumplicidade das mesas do Congresso, dos meios de comunicação e da elite
intelectual-civilizada do eixo Jardins-Leblon. A única solução legal é
ganhar as eleições livres nas quais a população julgará Bolsonaro, sua
conduta e sua administração. Para isso, é indispensável haver um
candidato de verdade, que seja capaz de apresentar ao eleitorado um
programa coerente de governo e dizer, enfim, o que vai fazer de
diferente, ou ao contrário, do que está sendo feito. Não há no momento
nenhum vestígio da existência de qualquer dessas condições.
A única alternativa, além dessa, para encurtar o mandato de Bolsonaro
e impedir sua reeleição sem rasgar a Constituição é destituir o
presidente através de um processo de impeachment — algo que exige os
votos de dois terços do Congresso e parece uma saída tão inviável quanto
a eleição de 2022. É isso que explica todo esse enorme ruído que está
aí. O tumulto é resultado da incapacidade incurável, por parte das
elites brasileiras, de admitir que o povo, sempre tido como um ente
sagrado em suas fantasias, é responsável pelas decisões eleitorais que
toma. Essa população elegeu há menos de dois anos, com 58 milhões de
votos e por maioria absoluta, um novo presidente; se escolheu mal, então
que aguente — e vote melhor na próxima oportunidade. Não dá, agora,
para anular uma decisão popular desse tamanho com uma fraude jurídica
grosseira. O Brasil desaprendeu o que é fazer oposição, se é que soube
um dia — a única forma de alternância de poder conhecida hoje pelo STF e
pelo mundo político que vive em seus subúrbios é depor os presidentes
da República que lhes desagradam. Não é mais uma exceção. Virou regra.
Como em todo golpe de Estado, a desculpa para jogar a lei no lixo é a
necessidade de “salvar a democracia”. A Constituição, dizem os
ministros do STF que querem virar a mesa, não pode servir de “proteção”
ou de desculpa para um presidente como Bolsonaro e para as forças
“antidemocráticas”. Para preservar as “instituições”, assim, é preciso
violar (só por um momentinho) as instituições; para defender a lei, é
preciso violar a lei, mas também só por um instante, certo? Os onze
ministros do STF, de uns tempos para cá, se declararam os únicos
brasileiros capacitados a dizer o que é bom ou ruim para o Brasil — e,
como ninguém diz nada, vai ficando por isso mesmo.
O STF, sozinho, não tem força para demitir ninguém — nem para
continuar impedindo o governo de governar, como faz no momento. Vai
precisar, mais cedo ou mais tarde, do apoio de quem tem essa força.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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