O que o "socialismo do século XXI" fez com a Venezuela é um dos piores
cataclismos da história, acusa o escritor Mário Vargas Llosa, em artigo
publicado pelo El País:
O segundo homem forte da Venezuela, Diosdado Cabello, enfurecido porque,
devido à vertiginosa inflação que açoita sua pátria, o bolívar
desapareceu de circulação e os venezuelanos só compram e vendem em
dólares, pediu a seus compatriotas que recorram ao “escambo” para
desterrar do país de uma vez por todas a moeda imperialista.
É certeza que os desventurados venezuelanos não lhe farão o menor
caso, porque a dolarização do comércio não é um ato gratuito nem uma
livre escolha, como acreditava o dirigente chavista, e sim a única
maneira pela qual os venezuelanos podem saber o valor real das coisas em
um país onde a moeda nacional se desvaloriza a cada instante pela
pavorosa inflação —a mais alta do mundo— à qual a Venezuela
foi levada por seus irresponsáveis dirigentes, multiplicando o gasto
público e imprimindo moeda sem respaldo. A alusão de Cabello ao escambo é
uma diáfana indicação desse retorno à barbárie que a Venezuela vive
desde que, em um ato de cegueira coletiva, o povo venezuelano levou o
comandante Chávez ao poder.
O escambo é a forma mais primitiva do comércio, aqueles intercâmbios
que nossos remotos ancestrais realizavam e que alguns pensadores, como
Hayek, consideram o primeiro passo dados pelos homens das cavernas em
direção à civilização. Certamente, comercializar é muito mais civilizado
que matar-se entre si a pauladas, como faziam as tribos até então, mas
suspeito que o ato decisivo para a desanimalização do ser humano tenha
ocorrido antes do comércio, quando nossos antecessores se reuniam na
caverna primitiva, ao redor de uma fogueira, para contar histórias.
Essas fantasias atenuavam o espanto em que viviam, temerosos da fera, do
relâmpago e dos piores predadores, as outras tribos. As ficções lhes
davam a ilusão e o apetite de uma vida melhor que aquela que viviam, e
dali nasceu talvez o primeiro impulso para o progresso que, séculos mais
tarde, nos levaria às estrelas.
Neste longo trânsito, o comércio desempenhou um papel principal, e
boa parte do progresso humano se deve a ele. Mas é um grande erro
acreditar que sair da barbárie e chegar à civilização é um processo
fatídico e inevitável. A melhor demonstração de que os povos podem,
também, retroceder da civilização à barbárie é o que ocorre justamente
na Venezuela. É, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo, e
quando eu era criança milhões de pessoas foram para lá procurar
trabalho, fazer negócios e em busca de oportunidades. Era, também, um
país que parecia ter deixado para trás as ditaduras militares, a grande peste da América Latina
de então. É verdade que a democracia venezuelana era imperfeita (todas
são), mas, apesar disso, o país prosperava num ritmo sustentado. A
demagogia, o populismo e o socialismo, parentes muito próximos,
fizeram-na retroceder a uma forma de barbárie que não tem antecedentes
na história da América Latina
e talvez do mundo. O que o “socialismo do século XXI” fez com a
Venezuela é um dos piores cataclismos da história. E não me refiro só
aos mais de quatro milhões de venezuelanos que fugiram do país para não morrer de fome;
também aos roubos abundantes com os quais a suposta revolução
enriqueceu um punhado de militares e dirigentes chavistas cujas
gigantescas fortunas fugiram e se refugiam agora naqueles países
capitalistas contra os quais clamam diariamente Maduro, Cabello e
companhia.
As últimas notícias publicadas na Europa sobre a Venezuela mostram
que a barbarização do país adota um ritmo frenético. As organizações de
direitos humanos dizem que há 501 presos políticos reconhecidos pelo
regime, e, apesar disso, isolados e submetidos a tortura sistemáticas. A
repressão cresce com a impopularidade do regime. Os corpos de repressão
se multiplicam, e o último a aparecer agora opera nos bairros
marginais, antigas cidadelas do chavismo, mas transformados, devido à
falta de trabalho e à queda brutal dos níveis de vida, em seus piores
inimigos. As surras e assassinatos a rodo são incontáveis e querem
sobretudo, mediante o terror, fortalecer o regime. Na verdade, conseguem
aumentar o descontentamento e o ódio contra o Governo. Mas não importa.
O modelo da Venezuela é Cuba: um país sonâmbulo e petrificado, resignado à sua sorte, que oferece praias e sol aos turistas, e que ficou fora da história.
Infelizmente, não só a Venezuela retorna à barbárie. A Argentina pode
imitá-la se os argentinos repetirem a loucura furiosa destas eleições
primárias, em que repudiaram Macri e deram 15 pontos de vantagem à dupla Fernández/Kirchner.
A explicação deste desvario? A crise econômica que o Governo de Macri
não conseguiu resolver e que duplicou a inflação que assolava a
Argentina durante o mandato anterior. O que falhou? Penso que o chamado
”gradualismo”, o empenho da equipe de Macri em não exigir mais
sacrifícios de um povo extenuado pelos desmandos dos Kirchner. Mas não
deu certo; mais do que isso, agora os sofridos argentinos
responsabilizam o atual Governo —provavelmente o mais competente e
honrado que o país teve em muito tempo— das consequências do populismo
frenético que arruinou o único país latino-americano que tinha
conseguido deixar para trás o subdesenvolvimento e que, graças a Perón e
ao peronismo, retornou a ele com perseverante entusiasmo.
A barbárie se assenhora também da Nicarágua,
onde o comandante Ortega e sua esposa, depois de terem massacrado uma
corajosa oposição popular, voltou a reprimir e assassinar opositores
graças a umas forças armadas “sandinistas” que já se tornaram idênticas
àquelas que permitiram a Somoza roubar e dizimar esse desafortunado
país. Evo Morales, na Bolívia, dispõe-se a ser reeleito pela quarta vez
como presidente da República. Fez uma consulta para ver se o povo
boliviano queria que ele fosse novamente candidato; a resposta foi um
não taxativo. Mas não lhe importa. Declarou que o direito a ser
candidato é democrático e se dispõe a se eternizar no poder graças a
eleições manufaturadas à maneira venezuelana.
E o que dizer do México?
Escolheu esmagadoramente López Obrador, em eleições legítimas, e no
país prosseguem os assassinatos de jornalistas e mulheres a um ritmo
aterrador. O populismo começa a carcomer uma economia que, apesar da
corrupção do Governo anterior, parecia bem orientada.
É verdade que há países como o Chile que, diferentemente dos já
mencionados, progridem a passos de gigante, e outros, como a Colômbia,
onde a democracia funciona e parece fazer avanços, apesar de todas as
deficiências do chamado “processo de paz”. O Brasil é um caso à parte. A eleição de Bolsonaro
foi recebida no mundo inteiro com espanto, por suas saídas de tom
demagógicas e suas exortações militaristas. A explicação desse triunfo
foi a grande corrupção dos Governos de Lula e Dilma Rousseff, que
indignou o povo brasileiro e o levou a votar numa tendência contrária,
não uma claudicação democrática. Certamente, seria terrível para a
América Latina que também o gigante brasileiro começasse o retorno à
barbárie. Mas não ocorreu ainda, e muito dependerá do que o mundo
inteiro, e sobretudo a América Latina democrática, faça para impedi-lo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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