Nós nunca andamos adiante da História, sempre fomos arrancados da nossa inércia por ela. Fernão Lara Mesquita, via Estadão:
Acabar completamente até o último tostão o dinheiro do Estado
brasileiro numa conjuntura internacional em que meramente imprimir notas
sem lastro como antigamente passou a ser suicídio é o evento mais
revolucionário dos 519 anos de história do Brasil.
Nós nunca andamos adiante da História, sempre fomos arrancados da
nossa inércia por ela. Mas, com o naufrágio iminente do País Oficial e a
perspectiva de a fonte secar para amplos contingentes dos “brasileiros
especiais” ativos e inativos, é certo que providências serão tomadas. A
situação é dramática o bastante para fazer um governante que começou
hesitante para pôr na ordem do dia uma reforma da Previdência admitir em
voz alta que já considera coisas como uma emenda constitucional para
permitir que funcionários públicos tenham sua jornada de trabalho e seu
salário reduzidos sem que o STF possa proibir essa forma de afrouxamento
do laço no pescoço da Nação e até – heresia das heresias! – em arranhar
de leve a regra pétrea, sacrossanta e imexível da estabilidade no
emprego custe o que custar.
A estabilidade no emprego, recorde-se, entra em campo em nome do
combate à perseguição política, mas instala-se como a mãe de toda
acomodação, de toda ineficiência e de toda corrupção. A obesidade
mórbida que acomete o Estado não é senão a inflação desenfreada da
compra de lealdades na luta pelo poder de um partido com pretensões
hegemônicas que ficou tempo demais em posição de distribuir privilégios.
E a humanidade inteira sabe que nada tem conserto onde toda a
organização da sociedade estrutura-se em cima do poder de, com um
simples gesto da mão, dispensar o detentor da graça recebida da
obrigação de entregar resultados e ter o esforço e o merecimento
individuais como únicas justificativas aceitáveis para a diferença.
A reforma da Previdência desacelera a marcha à ré, mas não é
suficiente para engatar a marcha adiante. Faltam os Estados, faltam os
municípios, o presidente fala demais e ama mais os filhos que a
segurança jurídica sem a qual não há investimento. E a soma de tudo isso
projeta para já um quadro de carências politicamente insustentável.
Mesmo assim, custa a instalar-se o sentido de urgência correspondente à
gravidade da situação.
O Judiciário – cujas mordomias e provas sucessivas de delirante
alienação fizeram de Maria Antonieta um símbolo de austeridade – é cada
vez mais assumidamente o núcleo duro da reação contra tudo o que possa
parecer justo ou razoável. E o Executivo reflete fielmente a ambiguidade
reinante no Brasil vocal (o dos privilégios) onde um terço está
pavlovianamente alinhado ao delírio direitista, outro terço ao delírio
esquerdista (indistinguíveis em tudo quanto extrapola a chamada “pauta
comportamental”) e o terço restante, representado pelo vilipendiado
ministro Sergio Moro e o abafado ministro Paulo Guedes, quando não está
aguentando “pito” calado para evitar perda total, tartamudeia alguma
coisa em favor da massa ignara dos sem voz e sem nada absorvida, como
eles próprios, na luta pela sobrevivência física ou econômica até o dia
de amanhã.
A surpreendente exceção é a da parcela menos insalubre do Congresso
Nacional que tem tido força suficiente, à revelia de tudo e de todos,
para marcar tentos a favor do Brasil. A conquista do nosso século 18,
com o fim da intocabilidade dos “direitos adquiridos” que nos mantêm
nesse feudalismo aggiornado onde os amigos do rei levam pedaços do
Estado ou do orçamento nacional, parece, ao alcance da mão e já tem quem
o defenda nos mais altos postos do País Oficial.
Para que pudéssemos sonhar com o século 20, porém, tem-lhe feito
falta aquela imprescindível “ajudazinha dos amigos” que, para quem ainda
vive de voto, só a imprensa pode dar. Mas também ela está dividida. A
que já não se vexa de afirmar o seu “direito” de negar registro do que
disserem ou fizerem os políticos se, ao seu alvitre, o ato do dia não
combinar com o que fizeram no dia anterior, assim como a que assume-se
como parte na luta pelo poder e dispara o que as facções em disputa lhe
enfiarem na culatra dificilmente têm recuperação. Mas a que ainda guarda
relação com sua função institucional é regida pelo mistério da fé que,
em pleno Terceiro Milênio, ainda mantém o Brasil institucionalmente
paralisado: a de que toda e qualquer “solução” tem de se dar
estritamente dentro do âmbito do Estado, que deve permanecer eternamente
impenetrável pelo eleitor que – burrinho coitado! – não sabe o que é
bom para si e deve continuar para sempre tutelado por esses zelosos
“cuidadores” que, em nome da justiça social, estão a ponto de completar a
ciclópica proeza de acabar com o Brasil.
Essa imprensa, refletindo o que vai pela cabeça de um enorme
contingente de brasileiros, não se cansa de ver fracassar as tentativas
do Estado controlar o próprio Estado, e repete a ladainha de sempre.
Embora reconhecendo que a coisa mais fácil do mundo será “surgirem
listas e mais listas de gastos importantes e urgentes”, insiste em
recomendar que seja o próprio Estado a criar alguma forma não definida
de providência milagrosa que “quebre as vinculações entre receitas e
despesas e gaste segundo as prioridades do presente e não os loteamentos
do passado”. Ou mesmo que “relativize a estabilidade no emprego”, mas
“sem facilitar a politização de admissões e demissões”.
O Brasil já tem tudo isso escrito em lei, mas não se permite
“empoderar” o xerife que a fará finalmente cumprir. A lei e a ordem só
se instalam onde o povo é guindado ao poder pelos instrumentos do
recall, da iniciativa de fazer leis, do referendo das leis dos
Legislativos e do controle das carreiras judiciais. Então sim, ao gasto
desviado sobrevém imediatamente o fuzilamento do mandato dos culpados
que são entregues a juízes cientes de que castigo pouco para crime tão
grave lhes vai custar a cabeça, e as leis são escritas, reescritas e
ajustadas a cada passo segundo a conveniência e a necessidade de quem
vai ter de segui-las.
Ainda haveremos de chegar lá.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário