O movimento foi o primeiro produto do capital fingindo que é contra si mesmo. Coluna de Luiz Felipe Pondé, publicada pela FSP:
O filme de Quentin Tarantino "Era uma Vez ... em Hollywood" é sua
obra mais reflexiva. O filme se passa nos dias que precedem o
assassinato da mulher de Roman Polanski, a deliciosa Sharon Tate. Vamos
aos detalhes.
Na comunidade hippie em que vive Charles Mason e seu harém de meninas
brancas de classe média, constantemente drogadas, a violência
travestida de "I love you" escorre pelas paredes imundas do buraco em
que vivem, assistindo à TV.
Quando Cliff, personagem de Brad Pitt, entra nesse buraco, caminhando
em meio ao lixo acumulado em toda parte (mas, lembre, tudo permeado por
"paz e amor"), uma rápida imagem chama a sua atenção: a de um rato
preso gritando de dor numa ratoeira ao lado do fogão. Essa cena é
paradigmática da imagem que o filme passa da contracultura.
A historiadora Gertrud Himmelfarb no seu "One Nation, Two Cultures"
já nos havia chamado a atenção para o fato que a contra cultura nunca
foi sobre paz e amor.
Ela foi sim, em muito, um movimento de enorme violência escondido
atrás de boa música, da recusa da Guerra do Vietnã e do sexo fácil. A
contracultura não foi um exercício amplo de paz e amor, foi um grande
surto de ódio contra a vida social, regado a boa música, drogas e sexo
barato.
Imagine você, um "regular guy", dando carona a uma gostosinha de
shortinho curtinho e ela lhe oferecendo uma chupada enquanto você dirige
seu carro (outra cena envolvendo Brad Pitt). Que cara não guardaria uma
simpatia secreta pela contracultura ganhando boquetes de graça assim no
meio do trânsito? Voltemos ao ratinho.
A indiferença profunda pelo sofrimento alheio aqui não trata de
bebês, cachorrinhos e gatinhos. Toca o fundo do poço: entende-se que
ratoeiras sejam usadas para pegar "ratos sujos", mas deixar o animal
agonizar gritando enquanto você fuma maconha, toma ácido e vê TV? Você
consegue imaginar algo mais típico do "sistema" do que ficar "bundando"
em frente a uma TV?
A contracultura foi o primeiro grande exemplo de mau caratismo
juvenil travestido de combate ao mundo injusto. De lá para cá, o modus
operandi "aliviou", mas a farsa continua a mesma. Sob o signo da recusa
ao "sistema", a preguiça ganha ares de crítica social. E o grande tédio
que marcou a contracultura se aprofundou em direção ao suicídio, à
melancolia e ao ativismo mimimi.
Outro traço evidente da contracultura apresentada por Tarantino é a
infantilização que se tornou uma epidemia de lá para cá. Adultos que
sonham em ser a bobinha da Sharon Tate no filme (hoje sonhando em ser
uma estrelinha no YouTube) ou o deprimido Dalton (DiCaprio) vendo que a
fama é espuma. Esse é um detalhe essencial desse Tarantino –o mundo
virou Hollywood, um parque temático de farsas festivas.
O ar de faz de conta do cinema hollywoodiano, que escondia o
desespero de um monte de gente que toparia qualquer sofá para chegar à
fama, se fez contrato social contemporâneo. Ao contrário do que o
ativismo político de gênero faz pensar, hoje não só atores topam
qualquer sofá para chegar à fama, a busca do sofá se tornou um direito
de todo cidadão na sua furiosa busca pela autoestima e pela fuga da
irrelevância.
A agonia, o vazio, o tédio, a banalização das drogas e o desprezo
pela vida cotidiana são a grande herança da contracultura –afora, claro,
a boa música e os jeans. Ela foi o primeiro grande produto do capital
fingindo que é contra si mesmo. "Liberando" meninas para boquetes nos
carros de estranhos, a contracultura desaguou num grande tédio assexuado
e num debate infinito sobre quem pode e tem o direito de comer quem ou o
que.
A velocidade com a qual Polanski dirige seu supercarro cool, ao lado
da deliciosa Sharon Tate, com o vento batendo no rosto, simboliza como
nada a ilusão de liberdade que aquela época legou ao mundo.
A sensação de poder e sucesso, os bacanais que eram mais sono, larica
e preguiça, se impuseram como cotidiano de um monte de gente que elevou
a adolescência a um paradigma da vida.
O horror ao burguês, na verdade, escondia o mau caratismo da preguiça como falsa crítica social.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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