Em artigo publicado pelo Instituto Mises, Gary North presta homenagem ao pensador Ludwig von Mises que, vivo fosse, completaria 138 anos:
Um indivíduo que sistematicamente discipline sua vida em torno do
objetivo de aprimorar as vidas daqueles que o rodeiam irá deixar um
legado. Este legado pode ser positivo ou negativo.
Existem aqueles que estão apenas em busca de poder e que, por isso,
irão tentar influenciar a vida de outras pessoas por meio do engano e da
adulação. Seu objetivo é mudar corações, mentes e o comportamento
daqueles que o cercam. Seu legado tende a ser negativo.
Mas há também aqueles que se esforçam ao máximo para transformar as
vidas de terceiros de uma forma positiva. Eles invariavelmente seguem
um estilo de vida específico, o qual governa suas ideias e seu
comportamento. Eles sistematicamente tentam estruturar suas próprias
vidas de tal maneira que eles próprios se tornam demonstrações empíricas
da própria visão de mundo que defendem.
Qualquer pessoa que tenha como o objetivo de sua vida mudar as
opiniões de outras pessoas tem de estar comprometida com dois
princípios: fazer sempre aquilo que defende e apoiar (de qualquer
maneira possível) causas que estejam de acordo com o que defendem.
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a maioria das pessoas
não quer mudar sua opinião em relação a nada. Mudar uma única opinião
significa que o indivíduo tem de mudar suas opiniões a respeito de
vários tópicos. Aquela velha regra é válida: "Você não pode mudar
apenas uma coisa". Portanto, há um alto custo ao se repensar aquelas
opiniões que você mais aprecia e valoriza. Pessoas tendem a evitar
empreitadas que envolvam altos custos.
Quando alguém é confrontado com uma nova opinião, se esta opinião
está relacionada a como as pessoas devem agir, uma das primeiras
autodefesas que o ouvinte irá levantar é esta: "A pessoa que está
recomendando esta nova ideia vive consistentemente em termos desta
ideia?" Se é algo óbvio para o ouvinte que esta pessoa não faz o que
diz defender, então fica claro que o próprio defensor da ideia não leva a
sério a verdade e a efetividade daquilo que ele diz defender. Isto dá
ao ouvinte uma maneira fácil de escapar da conversa. A ideia defendida
não vingará.
Ludwig von Mises
Meu único encontro pessoal com Mises ocorreu no segundo semestre de 1971. Eu havia sido contratado pela Foundation for Economic Education.
Naquela data, eu havia sido convidado para uma cerimônia especial.
F.A. Harper havia editado uma segunda coleção de ensaios honrando Mises.
O primeiro livro de ensaios havia sido editado pela esposa de Hans Sennholz, Mary Sennholz, e foi publicado em 1956.
A cerimônia ocorreu em um hotel em Nova York. Após a cerimônia, tive
a oportunidade de conversar com Mises sobre vários assuntos, inclusive
sua ligação com o sociólogo alemão Max Weber. Weber havia se referido
ao ensaio de Mises, O cálculo econômico sob o socialismo,
em uma nota de rodapé em um livro que Weber não chegou a completar.
Ele morreu em 1920. Mises me disse que ele havia enviado seu ensaio
para Weber.
Mises deixou um legado que, desde sua morte em 1973, vem crescendo
continuamente. Ele foi um daqueles raros homens que teve duas fases em
sua carreira. A primeira fase, que começou em 1912 e terminou após a
publicação da Teoria Geral (1936) de John Maynard Keynes, estabeleceu
sua reputação de grande teórico econômico. Seu livro de 1912 sobre moeda e sistema bancário, seu livro de 1922 sobre o socialismo, e seus vários artigos sobre tópicos específicos de teoria econômica o comprovaram um grande teórico.
Mas sua inflexível oposição a todas as formas de moeda fiduciária
estatal de curso forçado garantiu a ele a reputação de um Neandertal do
século XIX em um mundo de moedas estatais de curso forçado, o qual
começou com a abolição do padrão-ouro clássico no início da Primeira
Guerra Mundial, em 1914. Sua hostilidade ao socialismo também
contribuiu para seu status de pária. Ele estava vigorosamente
resistindo a tudo aquilo que os círculos acadêmicos consideravam ser a
onda do futuro. Acadêmicos sempre querem seguir modismos. Mises não
era assim.
O triunfo do keynesianismo após 1936, em conjunto com a erupção da
Segunda Guerra Mundial em 1939, trouxe um eclipse à carreira de Mises.
Na primeira metade da década de 1930, a influência do nazismo na Áustria
crescia sombriamente. Sendo um liberal da velha guarda e um judeu,
Mises sabia que seus dias estavam contados. Ele temia que os nazistas
tomassem o controle da Áustria, e ele estava correto. Sendo um
economista defensor do livre mercado — conhecido pela esquerda como o
mais implacável oponente do intervencionismo econômico — e um judeu, ele
não teria sobrevivido na Áustria.
Sentindo que tais eventos eram apenas uma questão de tempo, Mises
aceitou um cargo em Genebra e para lá se mudou em 1934, aceitando um
dramático corte salarial. Sua noiva o acompanhou e lá se casaram, não sem antes ele tê-la avisado que, embora escrevesse bastante sobre o assunto, ele nunca teria muito dinheiro.
Mises ficou em Genebra por seis anos, obrigado a deixar para trás sua
adorada Viena e tendo de ver, impotente, a civilização sendo
despedaçada. Quando os nazistas anexaram a Áustria em 1938, eles
saquearam seu apartamento em Viena e roubaram todos os seus livros e
monografias. Ele passou a viver uma existência nômade, sem ter a mínima
ideia de qual seria seu próximo emprego. E foi assim que ele viveu o
auge de sua vida: já estava com 57 anos e era praticamente um sem-teto.
Mas nada disso abalou Mises. Ele seguia concentrado em seu trabalho.
Durante seus seis anos em Genebra, ele continuou se dedicando à
pesquisa econômica e às escritas. O resultado foi sua até então obra
magna, um enorme tratado de economia chamado Nationalökonomie
(o precursor de Ação Humana). Em 1940, ele completou o livro, o qual
foi publicado por uma pequena editora e com edição extremamente
limitada. Mas quão intensa poderia ser, naquela época, a demanda por um
livro sobre liberdade econômica escrito em alemão? Certamente não
seria nenhum bestseller. E Mises certamente sabia disso enquanto o
escrevia. Mas escreveu assim mesmo.
No entanto, em vez de celebrações e noite de autógrafos, Mises
naquele ano se deparou com outro evento que mudaria (novamente) sua
vida. Ele foi avisado por seus patrocinadores em Genebra que havia um
problema. Vários judeus estavam se refugiando na Suíça. Ele foi
alertado de que deveria procurar outro lar. Os Estados Unidos eram o
novo porto seguro.
Mises então começou a escrever cartas pedindo por posições
universitárias nos EUA, mas tente imaginar o que isso significava. Ele
só falava alemão. Suas habilidades em inglês se resumiam à leitura.
Ele teria de aprender o idioma ao ponto de se tornar exímio o bastante
para poder dar aulas. Ele havia perdido todos os seus arquivos,
monografias e livros. Ele não tinha nenhum dinheiro. E ele não
conhecia ninguém influente nos EUA.
E havia um sério problema ideológico também nos EUA. O país estava
completamente dominado e fascinado pela economia keynesiana. A
profissão de economista havia sofrido um vendaval. Praticamente não
mais existiam economistas pró-livre mercado nos EUA, e não havia nenhum
acadêmico defendendo esta causa. No final, Mises se mudou para os EUA
sem ter nenhuma garantia de nada. E já estava com quase 60 anos.
Quando ele chegou aos EUA em 1940 como um judeu refugiado, ele era
praticamente um desconhecido no país. Ele não tinha nenhum cargo
assalariado de professor. Ele já tinha 59 anos. Ele jamais havia
estado nos EUA. Mas ele teve uma grande sorte: havia um jornalista nos
EUA que não apenas conhecia sua obra, como também havia se tornado um
defensor dela em suas colunas de jornal. Seu nome era Henry Hazlitt. Foi Hazlitt quem estimulou alguns empreendedores, como Lawrence Fertig, a fazer doações recorrentes a Mises.
Mises então passou a depender exclusivamente das doações destes
poucos amigos e de alguns artigos que eram ocasionalmente encomendados
por algumas revistas especializadas, a pedido destes amigos.
Durante os 30 anos seguintes, Mises foi uma voz solitária e sem
recursos em defesa do livre mercado, lutando contra a vastidão
keynesiana que dominava a paisagem mundial. Ele criou um seminário na
New York University (NYU) para estudantes universitários, o qual durou
25 anos. Murray Rothbard era um dos frequentadores assíduos, embora
apenas como ouvinte. Mises nunca recebeu salário da universidade, a
qual o relegou ao status de professor visitante. Ele recebia ajuda de
doadores. No entanto, não há hoje nenhum professor do departamento de
economia da NYU que seja lembrado. Todos foram pessoas sem importância e
não deixaram nenhum legado.
A publicação de seu livro Ação Humana,
pela Yale University Press em 1949, começou a estabelecer sua reputação
nos EUA. O livro vendeu muito mais do que havia sido inicialmente
previsto. Este livro foi o primeiro a conter uma teoria abrangente e
integrada da economia de livre mercado. Até então, nada remotamente
parecido havia sido publicado. Foram muito poucas as pessoas que se
deram conta disso em 1949, mas qualquer um que já tenha estudado a
história do pensamento econômico sabe que é neste livro que se encontra a
primeira aplicação abrangente da teoria econômica para toda uma
economia de mercado. A análise é integrada em termos da defesa
econômica austríaca da teoria do valor subjetivo e do individualismo metodológico.
Ele continuou escrevendo após 1949. Seus livros foram vendidos pela
Foundation for Economic Education (FEE), a qual fez com que ele ganhasse
a atenção de leitores que defendiam o livre mercado. Seus artigos
começaram a aparecer na revista publicada pela FEE, The Freeman. A revista não era de ampla circulação nos meios acadêmicos, mas era bastante lida pela direita.
Eu comprei uma cópia de Ação Humana em 1960. Naquela época, eu já
estava a par da importância de Mises para a história do pensamento
econômico, mas, em minha universidade, eu provavelmente era o único
estudante que o conhecia.
Mises sempre foi um obstinado em sua dedicação aos princípios do
livre mercado. Provavelmente mais do que qualquer outro grande
intelectual do século XX, ele era conhecido entre seus pares como alguém
inflexível, que não fazia concessões àquilo em que acreditava. Pelos
economistas da Escola de Chicago ele foi chamado de ideólogo. E eles
estavam certos. Por causa de sua consistência na aplicação do princípio
do não-intervencionismo em cada setor da economia e, acima de tudo, por
causa de sua oposição a bancos centrais e à manipulação estatal da
moeda, os economistas o consideravam excêntrico. "Excêntrico", para
eles, era sinônimo de "rigorosamente consistente".
Assim como os nazistas, os soviéticos também sabiam quem era Mises.
Após a queda do nazismo, os soviéticos confiscaram as obras de Mises
então em posse dos nazistas e as enviaram a Moscou. Suas obras roubadas
ficaram em Moscou e nunca foram descobertas por nenhum economista
ocidental até a década de 1980. O que foi uma grande ironia:
economistas ocidentais não sabiam quem era Mises, mas os economistas
soviéticos sim. Isto se tornou ainda mais verdadeiro em meados da
década de 1980, quando a economia soviética começou a se desintegrar,
exatamente como Mises havia previsto que aconteceria.
A grande vantagem de Mises sobre praticamente todos os seus colegas
era esta: ele escrevia claramente. Todos os outros economistas, além de
escreverem da maneira convoluta e repleta de jargões, enchem seus
escritos de equações. Mises não utilizava equações e nem recorria a
jargões. Ele escrevia seus parágrafos utilizando sentenças que eram
desenvolvidas de maneira sucessiva. Você pode começar pela primeira
página de qualquer um de seus livros e, se prestar atenção, chegará ao
fim sem se tornar confuso em momento algum.
Isto era uma grande vantagem, pois as pessoas comuns que se
interessavam por economia conseguiam seguir sua lógica. Sua reputação
se espalhou no final de década de 1950 e por toda a década de 1960 por
causa de seus artigos na The Freeman. Esta revista chegou a ter uma
circulação de 40 mil exemplares em alguns anos. Não eram muitos os
economistas que conseguiam, naquela época, atingir um público tão amplo e
tão variado.
Mises realmente se manteve firme aos seus princípios durante todo o
seu tempo de vida. Ele se manteve firme de maneira tão tenaz e
obstinada que, por décadas, ele não teve influência alguma sobre a
comunidade acadêmica. Todos os economistas o desprezavam ou ignoravam.
Porém, após sua morte em 1973, sua influência começou a crescer. Em
1974, seu discípulo F.A. Hayek ganhou o Prêmio Nobel de Economia. Pouco a pouco, a reputação de Mises foi se espraiando.
Hoje, há vários Institutos Mises ao redor do mundo — todos surgidos
voluntária e espontaneamente, sem nenhum financiamento centralizado —, e
seu nome é atualmente mais conhecido do que o de quase todos os outros
economistas de sua geração, tanto os de antes da Primeira Guerra Mundial
quanto os de depois da Segunda Guerra Mundial. O cidadão comum
certamente não está familiarizado com os nomes da maioria dos
economistas da primeira metade do século XX, e certamente é incapaz de
ler e compreender as obras de praticamente qualquer economista da
segunda metade.
Portanto, exatamente porque Mises nunca se mostrou disposto a fazer
concessões, especialmente na área de metodologia, seu legado tem sido
muito maior do que o da maioria de seus finados colegas. O legado de
Mises só cresce; o deles, praticamente não existe.
Conclusão
Mises deve ser julgado não somente como um pensador
extraordinariamente brilhante, mas também como um ser humano
extraordinariamente corajoso. Ele acima de tudo sempre se manteve
inarredavelmente apegado à verdade de suas convicções, sem se importar
com o resto, e sempre preparado e disposto a atuar sozinho, sem uma
única ajuda, na defesa da verdade. Ele jamais se importou um buscar
fama pessoal, posições de prestígio ou ganhos financeiros, pois isso
significaria ter de sacrificar seus princípios.
Durante toda a sua vida, ele foi marginalizado e ignorado pelo
establishment intelectual, pois a verdade de suas visões e a sinceridade
e o poder com que as defendia e desenvolvia estraçalhava todo o
emaranhado de mentiras e falácias sobre o qual a maioria dos
intelectuais de sua época — bem como os de hoje — construiu suas
carreiras profissionais.
Seus seminários, assim como seus escritos, eram caracterizados pelo
mais alto nível de erudição e sabedoria, e sempre mantendo o mais
profundo respeito pelas ideias. Mises jamais se interessou pela
motivação pessoal ou pelo caráter de um autor, e sim por uma só questão:
saber se as ideias daquela pessoa eram verdadeiras ou falsas. Da mesma
forma, sua postura e comportamento pessoal sempre foram altamente
respeitosos, reservados e fonte de amigável encorajamento. Ele
constantemente se esforçava para extrair de seus alunos o que neles
havia de melhor, para ressaltar suas melhores qualidades.
O mundo vive hoje mais uma era de planejamento econômico, e estamos
vendo os economistas se dividirem em dois lados. A esmagadora maioria
se limita a dizer exatamente aquilo que os regimes querem ouvir.
Afastar-se muito da ideologia dominante é um risco que poucos estão
dispostos a correr. As recompensas materiais são quase nulas, e há
muito a perder.
Ser um economista íntegro significa não se furtar a dizer coisas que
as pessoas não querem ouvir; significa, principalmente, dizer coisas que
o regime não quer ouvir. Para ser um bom economista, é necessário bem
mais do que apenas conhecimento técnico. É necessário ter coragem
moral. E, no mercado atual, tal atitude está ainda mais escassa do que a
lógica econômica.
Assim como Mises necessitou da ajuda de Hazlitt e Fertig, economistas
com coragem moral necessitam de apoiadores e de instituições que os
suportem e deem voz a eles. Este é um fardo que tem de ser encarado.
Como o próprio Mises dizia, a única maneira de se combater ideias ruins é
com ideias boas. E, no final, ninguém estará a salvo se a civilização
for destruída em consequência do predomínio das ideias ruins.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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