"Acima da fumaça palavrosa dos calhordas de ocasião, vemos que os
brasileiros são um agrupamento humano que não se cultiva como nação",
escreve Valetina de Botas (via coluna de Augusto Nunes):
A desolação é tão grande que nem consigo me alongar na discurseira
pós-museu-incendiado tão grandiloquente quanto estéril diante dessa obra
em aberto que é nosso atraso construído com o empenho cotidiano das
elites, das autoridades e da população. Sim, da população, pois, se “o
governo não se importa”, é porque a sociedade não se importa: governos,
qualquer um, só se importam (quando o fazem) se a sociedade se importar.
Nesses três dias, o Brasil da gambiarra reunido em torno do fogo se vê
em partes que se estranham e se acusam como se não formassem um todo em
chamas. Dilma Rousseff, ainda solta, aquela cuja parvoíce nos impôs um
Aloizio Mercadante como ministro da Educação que nos ensinou que museu
nada tem a ver com educação, aquela que preferiu superfaturar estádios a
impedir que a linda morada da nossa ilustre Luzia se incendiasse com a
própria dentro, veio culpar o “golpe”, Meirelles e o PSDB (!?).
Esquerdistas e antigovernistas culpam a PEC do Teto que mal completou um
ano enquanto sobrevive ao tempo o abandono do Museu Nacional do Rio, de
outros museus e aparelhos para a cultura e, consequentemente, daquilo
que uma nação é simbólica e concretamente.
Artistas de esquerda estão inconsoláveis diante “do retrato deste
Brasil assaltado pela direita” depois de terem se manifestado durante os
governos do PT apenas quando viram ameaçada a era da mediocridade
instalada pelo petismo que consumava um assalto inédito à nossa grana,
às instituições, à decência e também à cultura. Enquanto era avermelhada
a fachada do botequim inaugurado por Lula e sucateado por Dilma, tais
artistas não se dignaram a uma passeata, uma faixa ou um mísero tuíte em
favor da arte, da cultura, da memória. Estes mesmos militantes
desmemoriados do atraso cult, empalhados pela ideologia caquética que só
deu errado onde foi tentada e que coloniza a cabeça dos dirigentes da
UFRJ.
Não sei se o incêndio do Museu é retrato de alguma coisa, o que sei é
que, acima da fumaça palavrosa dos calhordas de ocasião, vemos que os
brasileiros são um agrupamento humano que não se cultiva como nação. Foi
no Rio, poderia ter sido em São Paulo, Piauí, Mato Grosso ou Paraná. Da
falta de saneamento básico em 51% das residências aos privilégios das
corporações, passando pela roubalheira e pelo Estado que sobra onde é
desnecessário e falta onde é essencial, o Museu Nacional do Rio ardeu na
parede da memória que não temos. Um país sem memória não se cultiva
como nação e será sempre este work in progress do atraso. Receio que não
sairemos desse lugar enquanto não celebrarmos nossos símbolos
(bandeiras, hinos, monumentos); preservarmos nosso patrimônio natural
(rios, ecossistemas) e arquitetônico; nossa língua quanto ao seu ensino e
uso; e nossa gente ─ nós mesmos, aqui e agora, nossos ancestrais, que
habitam nossa história como indivíduos, e as gerações que virão. Não se
trata de ufanismo bravateiro, mas de exercitar um patriotismo que
traduza ou crie um sentimento de pertencimento, que só floresce saneadas
divisões radicalizadas num país que, atado ao atraso, faz do novo um
fetiche e da história uma ruína.
No rescaldo, soubemos que o governo federal repassou verba para a
UFRJ e que a Universidade não destinou ao Museu a quantia de que ele
precisava, autoridades e palpiteiros querem rediscutir a lei Rouanet
(que não é ruim, se bem utilizada), criar fundações para administrar
todos os museus, privatizar tudo, montar esta e não aquela exposição,
fazer e acontecer ─ sem, claro, apontar como fazer e quanto vai custar a
racionalidade tardia. Olha, sou uma mulher comum, viu?, não sou ninguém
na fila do pão, como fez questão de me lembrar outro dia, num debate,
alguém tentando me intimidar. Ele não viu, mas eu ri da tolice inútil
tentando ser uma malvadeza. No Brasil, ultimamente rir dói, vamos
perdendo um certo jeito de sorrir que tínhamos, não é, meu poeta? Só que
é inútil me contarem o que já sei e, nesta fila de pão e circo, na
santa paz da minha cultivada irrelevância, me satisfaço se a
arquibancada não despencar e se eu puder levar uns pãezinhos para pôr na
mesa (os mais torradinhos, moço, com a casquinha saliente para eu ir
lambiscando na volta para a casa), como cidadã anônima que produz para
pagar o próprio pão e o de quem organiza a fila, faço um lembrete: que
tal, para a anunciada revolução de cabo a rabo na postura do país frente
a si mesmo e à sua memória, começar verificando a fiação dos museus e
abastecendo os hidrantes?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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