"Anitta dormiu e acordou outra pessoa. Não precisou nem de lobotomia,
recurso extremo que os democratas de porta de cadeia preferem não
utilizar. Por si mesma – e pelo amor à sua pele bronzeada – ela
reapareceu com um novo vídeo aderindo ao movimento do qual se recusara a
participar 24 horas antes. Vai, malandra, que o passado passou – e o
futuro é dos obedientes". Coluna de Guilherme Fiuza, publicada pela Gazeta do Povo:
Circula no Brasil um manifesto em defesa da democracia, e seus
signatários mais destacados mostraram que não estão de brincadeira:
quando a cantora Anitta resolveu afirmar seu direito à opinião
independente, tomou logo um tapa na boca, para deixar de ser abusada.
Anitta não tinha entendido como a banda toca. Democracia sim, querida. Mas a nossa, ok?
Ok. Ela entendeu rápido, até porque tem amor à pele. Todo mundo sabe
que mexer com os democratas de porta de cadeia pode ser um problemão.
Ou, mais precisamente: pode te transformar em morto-vivo. Vai cantar no
banheiro, companheira, onde a acústica é perfeita para quem desafinou o
coro da patrulha.
Tudo começou quando Anitta, pressionada a aderir à campanha #EleNão,
contra Jair Bolsonaro, declarou que não iria fazer parte de movimento
algum. Não era um posicionamento político. Ao contrário: em meio à
epidemia de causas e engajamentos de ocasião, ela afirmou o direito do
artista de opinar ou não opinar, se envolver ou não se envolver com o
que quiser ou não quiser.
De uma simplicidade comovente.
Para quem ficou na dúvida, até porque anda um pouco difícil mesmo ver
as coisas como elas são, aqui vai a confirmação: a funkeira da laje deu
uma aula de dignidade à elite cultural brasileira.
Ou seja: enlouqueceu. Não sabe com quem tá se metendo, garota?
Agora já sabe. Em questão de horas, o mundo desabou sobre Anitta –
essa doida que declarou que todos são livres para expressar o que
quiserem. De onde terá ela tirado essa insanidade? De algum autor
iluminista ou de algum para-choque de caminhão?
A real aqui é outra, parceira. É proibido proibir, desde que você não
esteja atrapalhando a lenda (e o business) dos progressistas
profissionais que mandam no pedaço. Cala a boca já morreu pra quem não
falar demais. Ou de menos. Entendeu agora?
Entendeu. Anitta dormiu e acordou outra pessoa. Não precisou nem de
lobotomia, recurso extremo que os democratas de porta de cadeia preferem
não utilizar. Por si mesma – e pelo amor à sua pele bronzeada – ela
reapareceu com um novo vídeo aderindo ao movimento do qual se recusara a
participar 24 horas antes. Vai, malandra, que o passado passou – e o
futuro é dos obedientes.
A presença de Anitta na luta contra os hipócritas de grife não durou
um dia. Agora, como se dizia quando a ditadura calava ou sumia com
alguém, Anitta está “ausente”.
O gentil “desafio” à cantora, que lhe oferecia a escolha entre ser
frita em fogo lento ou rápido, foi vocalizado por Daniela Mercury – ela
mesma a prova viva de que, nos dias de hoje, um artista sem arte só
desaparece se quiser. Não tem mais o menor problema se o público não
quer te ouvir, porque uma manchete sobre a sua vida sexual te bota no
jogo de novo.
Se voltarem a te esquecer, você ameaça grudar numa colega
bem-sucedida o selo de homofóbica e racista. Aí é só correr pro abraço.
Daniela e grande elenco de democratas temem que o Brasil caia num
regime autoritário. E acharam a maneira de evitar a implantação de uma
ditadura amanhã: implantá-la hoje.
O estupro moral e mercadológico de Anitta – impondo a ela o vexame de
engolir sumariamente suas palavras em público – é o ato mais
representativo dessa corrente da bondade que quer devolver o país a um
simpático criminoso preso por corrupção. Lula e sua gangue merecem a
chance de roubar um pouco mais o povo sem perder a ternura – e sem tirar
um centavo dessa elite libertária que decide, docemente, quem pode
dizer o que.
Ao contrário do pronunciamento original de Anitta, que não tinha
segundas intenções partidárias ou ideológicas – e por isso mesmo foi
abatido a tiros pela patrulha pacifista e humanitária –, o tal manifesto
pela democracia é um jeitinho de panfletar para o suplente de
presidiário como “salvação progressista contra o autoritarismo”.
De autoritarismo eles entendem – não o da ditadura de meio século
atrás, mas a de hoje, liderada aqui do lado pelo companheiro Maduro,
cujo regime sanguinário é apoiado velada ou explicitamente pelos
signatários mais famosos do manifesto democrático. Se o Lula falou que o
chavismo é modelo de democracia, tá falado.
Fica combinado assim: Anitta amordaçada, Lula livre, poste
presidente, Dilma na presidência do Senado, Gleisi na presidência da
Câmara, Toffoli na presidência do Supremo e você na Venezuela. Não
precisa nem comprar passagem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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