STF em sessão: retrato vivo de uma democracia na UTI. |
Estão em vigor os direitos e liberdades mais comuns, mas é um arranjo
provisório, que só fica de pé porque ninguém se organizou para jogar
tudo por terra. Isso não é democracia, escreve J. R. Guzzo na coluna Fatos:
A democracia no Brasil, se quisermos dizer a verdade em voz alta e
sem perder tempo com muito palavrório, está valendo cada vez menos hoje
em dia. Esqueça essa conversa de que “as instituições estão
funcionando”, ou que a democracia brasileira já “está adulta”, ou que
“não há mais lugar para aventuras autoritárias” no mundo do século XXI.
As instituições não estão funcionando coisa nenhuma. A democracia no
Brasil pode estar adulta, mas sua idade mental no momento é de 3 anos.
Quanto à falta de espaço para regimes não-democráticos no mundo de hoje —
bom, aí já dá vontade de rir. Se há alguma coisa que existe de sobra
neste planeta, nos dias que correm, é terreno para se montar qualquer
espécie de ditadura — ditadura sob medida, até, em vários modelos e
estilos, de classe econômica à première plátinum plus. E o que sobrou de
democracia no Brasil —quanto tempo ainda dura até ir para o espaço?
Difícil dizer. Pode demorar um tanto mais, um tanto menos. Para a
maioria dos brasileiros, tanto faz — estão pouco ligando para o assunto,
e quando ligam é para torcer contra. Mas parece certo que os demais, os
que se dizem democratas ou ganham a vida nos cargos, funções e
atividades que a democracia fornece, estão contribuindo o máximo que
podem para que tudo vá o mais breve possível para o raio que o parta.
É claro que estão em vigor os direitos e liberdades mais comuns, e
isso precisa de uma ordem democrática para existir. Você pode tomar um
ônibus de São Paulo a Goiânia, por exemplo, sem pedir licença a ninguém.
Pode falar mal do governo o quanto quiser. Pode ir à igreja da sua
preferência, ou não ir. A polícia não pode prender as pessoas sem
mandado judicial e é obrigada a fazer um boletim de ocorrência se lhe
roubarem alguma coisa. Para tirarem um cidadão da casa onde mora é
preciso uma sentença de despejo. Você tem direito (e a obrigação) de
votar, de chamar a ambulância do SUS e de assistir as sessões da Câmara
de Deputados, no espaço reservado ao público. Você é dono da Petrobras,
do Banco do Brasil e da empresa criada em 2012 para construir o trem
bala, sem contar os canais de transposição das águas do São Francisco, a
TV Brasil e o bondinho do Pão de Açúcar. Mas não são essas coisas que
estão faltando na democracia brasileira. O que lhe falta, e põe sua
existência cada vez mais em risco, é a lógica comum. A democracia neste
país, hoje, é uma geringonça sem pé nem cabeça — e coisas sem pé nem
cabeça raramente têm um grande futuro pela frente.
Honestamente: como é possível o país ter democracia e, ao mesmo
tempo, ter o ministro Edson Fachin, um dos 11 monarcas que hoje se
sentam no Supremo Tribunal Federal? Ou se tem uma coisa ou a outra. Todo
mundo sabe que não pode existir democracia em lugar nenhum sem que haja
plena segurança jurídica — ou seja, sem a expectativa de que a lei será
aplicada conforme está escrita e dentro de um entendimento racional,
todas as vezes que for necessário e de maneira igual para todos. Mas o
ministro Fachin é o que se poderia chamar de insegurança jurídica
ambulante — é o contrário, justamente, do que um regime democrático
precisa. Onde está a lógica? Dias atrás, num voto no tribunal eleitoral,
Fachin passou duas horas inteiras torturando o português, a razão e lei
brasileira com um alarmante teorema em favor da insanidade. Sim, dizia
ele: não há nenhuma dúvida legal que o ex-presidente Lula é inelegível.
Mas uma força superior, segundo nos disse, anula a lei nacional. Que
força seria essa? Deus? Não: dois sujeitos que fazem parte de um comitê
de dezoito consultores da ONU em direitos humanos. Eles não têm nenhum
poder funcional — não são a Corte Internacional de Haia, a Agência de
Energia Atômica de Viena ou a Assembléia Geral. Não têm existência
jurídica. Não julgam nada, nem decidem nada; só dão pareceres, e acharam
que Lula tem o direito de se candidatar à Presidência.
Mas só dois, entre dezoito, resolveram isso? Só dois. Ouviram os dois
lados — os advogados de Lula e o Ministério Público Brasileiro? Não. Só
ouviram o lado de Lula. O que decidiram representa uma posição oficial?
Não; isso eles só vão dar no ano que vem. Em suma: é uma insânia, e por
isso mesmo o tribunal eleitoral negou por 6 a 1 o pedido de Lula. O
espanto é que tenha havido este 1 a favor —o voto de Fachin. Nada do que
ele disse fez o mais remoto sentido. E se os dois consultores tivessem
decidido que o Brasil deveria invadir o Peru, por exemplo, ou restaurar a
monarquia? Fachin acha que a gente seria obrigado a obedecer, sob pena
de ficar na ilegalidade internacional. Se um ministro da nossa suprema
corte de fende um negócio desses, não é possível ter a menor confiança
em nada do que o homem venha a decidir. Argumentou-se, é claro, que ele
não é sempre assim; ao contrário, tem votado de maneira sensata. Mas aí é
que está o problema: ele pode surtar a qualquer momento, sem avisar
ninguém, e dar outro voto igual a esse — e não há absolutamente nada que
se possa fazer a respeito. Insegurança jurídica é justamente isso.
Outra coisa: Fachin não teria direito à sua opinião pessoal? Não desse
jeito, da mesma maneira que você não pode dizer: “Na minha opinião a
Terra é quadrada”. Isso não é opinião, nem democracia.
É esquisita, nessa e em outras histórias similares, a ligeireza com
que se aceita o espetáculo do circo pegando fogo. Os ministros se
acharam na obrigação de cumprimentar Fachin pelo seu “brilhante voto”;
ele, por sua vez, achou “brilhantes” os votos dos seis colegas que
massacraram cada palavra que disse. Todos acharam igualmente “brilhante”
a chicana de terceira categoria, amarrada com barbante, que a defesa
armou com essa comissão da ONU. Brilhante por que, se é um completo
disparate? Tudo isso causa a pior impressão. Nossos mais altos tribunais
de Justiça parecem hoje montepios de ajuda mútua, onde a solidariedade
entre os sócios se pratica através da puxação automática e perene de
saco. Asinus asinum fricat, poderiam dizer uns aos outros — não são eles
que gostam tanto de socar latinório em tudo o que falam, para o público
não entender nada? Pois então; eis aí um pouco de latim para verem se
está ao seu gosto. O STF, por sinal, é o retrato vivo de uma democracia
na UTI. Cada ministro, entre outros espantos, conta com a assistência
individual de um funcionário (salário de até 12.000 por mês, mais horas
extras, chamado “capinha”) que lhe puxa a poltrona na hora de sentar à
mesa. Pode uma coisa dessas? Nem a Rainha Elizabeth II tem um serviço
assim — possivelmente, não existe nada parecido em nenhum outro lugar do
mundo. Os ministros acham isso normal, como acham normal seu recente
aumento de 16% nos salários diante de uma inflação anual de 4%, seus
privilégios materiais, seus dois meses de férias por ano, sua
aposentadoria com vencimentos integrais e por aí afora. Isso é
simplesmente desigualdade — e como acreditar numa democracia onde a
maior corte de justiça vive abertamente com direitos individuais
superiores aos dos cidadãos que julgam? Pior: se o Judiciário está
assim, imagine-se o resto.
Isso não é democracia — é um arranjo provisório, que só fica de pé porque ninguém ainda se organizou para jogar tudo no chão.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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