De repente, o
caminhoneiro virou símbolo de quê? Derruba-se o governo, subleva-se o
governo popular? “Todo poder aos sovietes!” Deu no que deu, porque o
poder sempre será preenchido: por caminhoneiros e seus patrões, por
fascistas de esquerda e de direita, por eleitores de Boulos e de
Bolsonaro. Texto de Gustavo Nogy, publicado pela Gazeta do Povo:
“Marcela amou-me
durante quinze meses e onze contos de réis.” Amei a Revolta da Gasolina
por aproximadamente trinta e seis horas. Nada menos. Amei, cri nas boas
intenções, confiei nas juras. Foi eterno enquanto durou, mas durou
pouco. Marcela de um lado, eu de outro. Caminhoneiros de um lado, eu de
outro.
Num primeiro momento,
não é difícil simpatizar com a causa. Os tributos são altíssimos, a
sensação de anomia é forte demais para ser ignorada, as derrapagens na
política econômica dos últimos anos desnorteiam o trabalhador. Parece
que nada acontece e nada vai a lugar nenhum.
A história, é bom não
esquecer, vem de mais longe. Não deixa de ser irônico que o despedaçado
governo Temer, com todos os defeitos que tem, esteja apanhando por
tentar arrumar a bagunça do governo Dilma.
Então os
caminhoneiros resolveram parar. E parar o país. Um dia, dois dias, três…
quatro… sete dias. Mercados e feiras sem abastecimento e a comida
apodrecendo. Hospitais e aeroportos, necrotérios e canis. Os
caminhoneiros sentaram na boleia do país e lá resolveram ficar. Houve
negociação num dia, frustrada no dia seguinte.
Das primeiras
exigências passaram às segundas, às terceiras, and counting. Reclama-se
do preço do combustível, do voto impresso, do pedágio, do Michel Temer,
do sumiço da Sula Miranda, da intervenção militar. Sim: caminhoneiros
pedem intervenção militar enquanto militares tentam manter a ordem
pública. O Brasil é um objeto impossível.
O resultado disso
tudo, que começa como reivindicação (legítima) e termina como chantagem
(ilegítima), não será reforma tributária, cinquenta anos em cinco,
queda da Bastilha: será, tão somente, a acovardada concessão de
subsídios e a promessa de congelamento de preços e ainda mais regulação
para determinada classe. Caminhoneiros comemoram? Pois seus patrões
comemoram ainda mais.
E a conta vai chegar para alguém. Não existe almoço grátis. Não existe combustível grátis.
Se um improvável
caminhoneiro me pedisse opinião, eu não daria minha opinião – eu a
trocaria por cinco galões de gasolina. Ainda assim, se insistisse, eu
diria o seguinte: greves são legítimas e eles são uma classe de fato
poderosa. Que a paralisação durasse vinte e quatro, trinta e seis horas,
como um forte recado ao governo: “Senta aqui, governo, precisamos
conversar.” O governo muito provavelmente teria percebido que seria
melhor conversar.
Se o governo
ignorasse e não houvesse conversas, em alguns dias, outra paralisação:
vinte e quatro, trinta e seis horas. Isso é tempo suficiente para
começarem os problemas e a categoria mostrar a força que tem; por outro
lado, não é tempo demais que prejudique o resto da população, que sofre
tanto quanto os caminhoneiros.
E quanto à pauta? Que
não fosse circunscrita a interesses restritos, nem a sentimentos
indeterminados ou grupais. Que pensasse em longo prazo. Que propusesse
reforma tributária profunda e corte de gastos governamentais, como sugere Eduardo Giannetti.
Que exigisse a privatização da Petrobras e a abertura do mercado. Que
sugerisse a diversificação logística do transporte de carga no país.
Estas, sim, mudanças estruturais profundas e imprescindíveis. De quebra,
em curto prazo, algum corte tributário seria aceitável como forma de
barganha.
Mas não, nada disso
se pede. Pede-se mágica. Pede-se o que Sarney, ele mesmo, fez com gosto:
congelamento de preços, controle, intervenção, subsídios, proteção.
Pede-se tudo o que uma criança pede ao papai: doces, balas, sorvetes
antes da comida. Porque infelizmente, ainda que a política econômica de
governos desastrosos seja ilógica, a economia, em sentido estrito, é
cruelmente lógica. Basta abrir o livro-texto do primeiro ano.
O movimento se
metamorfoseou e, pouco a pouco, perdeu legitimidade moral. Para
chantagear o governo, chantageia-se o país governado por ele, como um
sequestrador que ameaçasse o refém para conseguir resgate. Esse
sentimento mais ou menos difuso de revolta, de insatisfação, que todos
sentimos, tem de se consolidar em voto decente, em protestos e
negociações consistentes e duras, porém civilizadas. Não sendo assim,
tudo termina nos 20 centavos de alguns anos atrás.
De repente, o
caminhoneiro virou símbolo de quê? Derruba-se o governo, subleva-se o
governo popular? “Todo poder aos sovietes!” Deu no que deu, porque o
poder sempre será preenchido: por caminhoneiros e seus patrões, por
fascistas de esquerda e de direita, por eleitores de Boulos e de
Bolsonaro.
Ser contra tudo não
quer dizer nada. Dizer que alguma coisa tem de ser feita é aceitar que
qualquer coisa seja feita, boa ou ruim. Creio em poucas coisas na vida,
mas de uma tenho certeza: é mais fácil acreditar na Transubstanciação
que nos poderes demiúrgicos desse desconhecido – o povo. Já não tenho
mais quinze anos de idade, meus hormônios deram lugar aos meus
neurônios, sinto muito por isso.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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