No último fim de
semana, a sociedade brasileira, em sua maioria apavorada com a
insegurança generalizada que assola o País e animada com a possibilidade
de a impunidade vir a ter fim pela brava ação de uma nova geração de
agentes da lei, acompanhou, petrificada, duas notícias coincidentes. De
seu gabinete no Supremo Tribunal Federal (STF) o ministro Marco Aurélio
Mello disparou uma penada autocrática que garantiu a liberdade de 11
facínoras do tráfico de drogas no Ceará. Num gabinete próximo, no mesmo
prédio, seu colega Gilmar Mendes soltou quatro investigados na Operação
Rizoma, que estavam presos no Rio.
Num colegiado que nem
sempre prima por atender às duas exigências básicas para a ocupação de
uma cadeira no órgão máximo do Judiciário – notório saber e indiscutível
lisura –, o ex-advogado geral da União no governo Fernando Henrique e o
juiz do Trabalho nomeado pelo primo Fernando Collor são tidos e havidos
pelos advogados que frequentam a dita “alta Corte” entre os mais
preparados tecnicamente.
Marco Aurélio
notabilizou-se pela postura autossuficiente, que o tornou uma espécie de
campeão do colegiado em votos vencidos e lhe valeu, para o bem ou para o
mal, a fama de “espírito de porco” da Corte. A metáfora remonta à
Bíblia: sãoMateus contou que um endemoniado, exorcizado por Jesus Cristo
em pessoa, foi curado com a expulsão dos demônios que o possuíam
transferidos para uma manada de porcos que, por coincidência, passava ao
largo. Os porcos atiraram-se num precipício e o exorcismo passou a ser
uma prática cristã, cada vez menos usada, mas ainda considerada
apropriada. Até hoje, alguns sacerdotes usam o título de exorcista para
repetirem na vida real o milagre do Filho de Deus. O evangelista,
contudo, não se referiu ao imenso prejuízo causado pelo milagre ao dono
dos porcos, de quem nada sabemos. Se aqueles porcos eram seu único
patrimônio, o que não seria absurdo, seu prejuízo foi uma “perda total”,
como se define em sinistros também pela sigla “PT”.
Sua Excelência
desligou-se da chama do nepotismo desde que, no julgamento que depôs o
primo e patrono da Presidência da República, considerou-se impedido de
votar. Mas, durante as votações do colegiado em decisões que afetaram o
destino da ex-presidente Dilma Rousseff, ele nunca deixou de dar seus
votos, que amenizaram sua fama de antípoda dos colegas, mas não
reduziram sua coleção de votos vencidos. O autor destas linhas prefere
eximir-se de qualificar tais votos e aconselha o leitor interessado a
buscar encontrá-los na memória comum do Google, fácil nesta nossa era
dita cibernética, assim definida pelo matemático norte-americano Norbert
Wiener.
Minoritários ainda
são seus votos na Primeira Turma, na qual costuma perder decisões que
confirmam a jurisprudência, mercê da decisão de Rosa Weber, que foi voto
vencido como ele em sua fixação, autorizando a prisão após segunda
instância, mas sempre apoia a decisão da maioria do colegiado. Há quem
lamente a coerência da ministra gaúcha, mas dessa queixa o primo de
Collor não padece nem sequer por Dilma, que terminou deposta, mas ainda a
tempo de nomear Letícia, filha do ministro e advogada precoce numa
banca carioca, desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2.ª Região
(TRF-2), abrangendo Rio de Janeiro e Espírito Santo. Há dois anos,
interrogado no Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo sobre a nomeação,
ele disse que a filha tinha feito voto de pobreza, pois poderia ganhar
mais como advogada. Recentemente, o extremoso pai votou a favor do
habeas corpus de Lula, pleito defendido pelo ex-marido da filha
prodígio, Cláudio Pereira de Souza Neto. Para o ministro, essa história
de que o vínculo de genro com sogro permanece mesmo com a dissolução do
conúbio não passa de lenda urbana.
Certo mesmo é que o
genro (ou ex-genro, como talvez ele prefira) milita na causa dos
advogados que lutam pela perpetuação da confusão estabelecida entre
“culpa” e “prisão” na leitura marota do artigo constitucional que
encaminha réus condenados na segunda instância à eternidade do que
nestes trópicos se intitula “trânsito em julgado”. O sogro (ou, quem
sabe, ex-sogro) continua patrocinando causas nesse sentido. Sua decisão
de soltar bandidos comuns é, portanto, coerente com seus votos, que
contrariam frontalmente, com insistência e impaciência, a decisão
majoritária do plenário, do qual é o segundo mais antigo membro.
Nessa posição tem
sido acompanhado por colegas da outra turma, Ricardo Lewandowski e Dias
Toffoli, a dupla Ricardo Toffoli, Pelé-Coutinho dos habeas corpus de
todo dia no STF. Nem sempre foi assim. O mato-grossense Gilmar Mendes,
respeitado por seu notório saber jurídico, de gênero explosivo, deu os
votos menos “garantistas” do mensalão, o que não o impediu de ser
acusado (do que nunca se defendeu) de comandar jagunços em seu
latifúndio natal. Mesmo nomeado por Fernando Henrique Cardoso para a
vaga, o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que absolveu
a chapa Dilma-Temer por “excesso de provas”, contudo, deu uma guinada
de 180 graus. Em 2016, inimigo de Lula e do PT, votou a favor da decisão
do colegiado de autorizar início de cumprimento de pena após condenação
em segunda instância, mas mudou de opinião desde que ela foi tomada
para cá. A ponto de Wadhy Damus, procurador informal de Lula na Câmara
dos Deputados, tê-lo definido como “amigo do PT” para justificar a
peregrinação petista a seu gabinete quando o “Lula livre” passou a
contar com seu voto, sua simpatia e, sobretudo, seus rugidos de fera
indomável da garantia da liberdade de todos quantos lho permitam seus
conceitos acadêmicos e o sucesso de seus negócios fabulosos.
O professor doutor
Gilmar, formado na Alemanha, possui um negócio fabuloso no prodigioso
ramo da educação privada, o Instituto Brasiliense de Direito Público
(IDP), dispondo-se a cruzar permanentemente o Atlântico para comparecer a
reuniões de ócio e negócio em Portugal, país chamado por Carlos Lacerda
de “nosso avozinho”. Como Marco Aurélio, Gilmar nunca se preocupou com o
fato de dar habeas corpus a clientes do escritório do qual a mulher,
Guiomar, é sócia. Nem ao rei dos ônibus do Rio, Jacob Barata, de cuja
filha foi padrinho de casamento. Desde que a Lava Jato incluiu tucanos
na lista de suspeitos, passou-se para o lado “garantista” com o fervor e
a fúria de sempre. Pode ter sido coincidência de datas, mas o fato é
inegável. Inimigo figadal do Ministério Público e de juízes federais,
tais como Bretas e Moro, não os tem poupado dos mesmos impropérios com
que, à época do mensalão, mimoseava Lula e seus comparsas. Fiel à nova
posição, mandou soltar os ditos “operadores” – nababescos ofícios neste
país de mais de 24 milhões de desiludidos (apud IBGE) do MDB de seu
conviva permanente Michel Temer e do PSDB de guerra e paz, de Aécio
Neves e Eduardo Azeredo.
Seja qual for o
motivo, certo é que Gilmar e Marco Aurélio pregam a fábula do
“garantismo” para soltar traficantes e doleiros com idêntico refrão: os
indigitados não oferecem mais nenhum risco às investigações que
protagonizam. Assim consagram, em decisões que não podem ser
contrariadas pelas funcionários das três instâncias jurídicas abaixo da
dele, que ainda acreditam que a pena criminal deveria servir,
prioritariamente, para punir quem delinque com afastamento do convívio
social. Faz isso em nome do que o advogado que defendeu Lula no STF,
Roberto Battochio, chamou de “punitivismo” cruel, desumano e tirânico.
Vivemos numa
democracia, sob o império da lei, e aprendi com meu pai, chefe político
da UDN no sertão da Paraíba, que decisão de juiz se cumpre, não se
contesta. Autoridade de pai sertanejo não se perde depois da morte. Mas
também sou pai e avô e, em consequência, responsável pela vida de meus
filhos e netos. E em nome da integridade física e mental de meus
descendentes e dos brasileiros que não têm patrimônio para pagar a
advogados de togas elegantes que vão a Brasília pedir vênia aos
“supremos”, eu sentiria que eles ficariam mais protegidos se criminosos
pagassem com penas na forma da lei os delitos que cometem, como sempre
se fez no contexto do que se chama de Estado de Direito, condição
basilar da civilização humana.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário