"Uma sociedade que
valoriza a liberdade deve cultivar uma cultura que encoraja a clareza de
pensamento e combate à sua debilitação. Por isso, drogas recreativas
devem ser legalmente proibidas. Libertários, consequentemente, devem se
opor à legalização das drogas". Dá o que pensar este artigo do professor Timothy Hsiao, traduzido pela Gazeta do Povo:
Muitos libertários [e
liberais, no Brasil] argumentam que devemos legalizar drogas
recreativas em nome da liberdade e da autonomia pessoal. A proibição das
drogas, eles defendem, viola a liberdade pessoal ao negar aos
indivíduos a liberdade de fazer o que desejam com seus corpos.
Isso está errado. Na
verdade, é a legalização das drogas que viola a liberdade. A proibição
das drogas, não a legalização, é a real posição pró-liberdade.
Os fundamentos da liberdade
Todos deveriam
concordar que uma das responsabilidades essenciais do governo é proteger
e promover a liberdade individual. Com esse objetivo, governos têm um
interesse em restringir atividades que prejudiquem, destruam ou de
qualquer maneira enfraqueçam a liberdade individual.
Agora, a liberdade
não pode florescer a menos que certas condições de fundo sejam
cumpridas. Considere uma analogia com os mercados. Se um governo quer
proteger e promover mercados, então ele deve proteger as condições que
tornam uma economia de mercado possível. Estas condições incluem a
proteção da vida, das trocas, de acordos e da propriedade privada. Sem
estes pré-requisitos, seria impossível para os mercados prosperarem.
O mesmo é verdade
para a liberdade. Se o governo tem a responsabilidade de proteger e
promover a liberdade, então ele deve também proteger e promover as
condições que a tornam possível. Nesse sentido, um ingrediente essencial
para a liberdade individual é a racionalidade. Escolhas só podem ser
livres se são feitas por uma pessoa cujas funções cognitivas estão
funcionando corretamente.
A razão confere uma
certa ordem e inteligibilidade a nossas ações que as tornam explicáveis e
coerentes. É o que faz nossas ações serem nossas, de modo que sejamos
responsáveis por elas. Nossa habilidade de agir livremente é reduzida ou
destruída se não somos capazes de deliberar e pensar coerentemente, ou
se estamos sujeitos a grandes forças coercitivas.
Em outras palavras, a
liberdade não é apenas a simples habilidade de fazer algo; é a
habilidade de agir sob a influência de funções cognitivas em bom
funcionamento. Esse ponto é fundamental para dar sentido aos conceitos
jurídicos de consentimento, coerção e competência. Crianças não são
capazes de entrar em contratos juridicamente vinculantes porque suas
capacidades cognitivas não estão completamente desenvolvidas. Da mesma
forma, defesas com base na insanidade fundamentam-se na compreensão de
que pessoas cognitivamente deficientes ou insanas não podem ser
consideradas criminalmente responsáveis por suas ações. Não pode haver
liberdade sem racionalidade.
Assim, já que o
governo tem uma responsabilidade em proteger a liberdade individual, ele
deve também proteger e promover uma cultura que seja favorável ao
pensamento lúcido e combata o pensamento alterado. O governo, desta
forma, tem uma responsabilidade em restringir atividades que reduzam,
destruam ou enfraqueçam o pensamento lúcido.
O uso recreativo de drogas enfraquece a liberdade
O uso recreativo de
drogas interfere na clareza de pensamento. A própria atividade é
centrada no consumo de uma substância inebriante que prejudica a
cognição. O principal objetivo é afetar a habilidade de pensar com
clareza, o que por sua vez compromete a habilidade de pensar livremente.
Portanto, drogas recreativas deveriam ser legalmente restritas porque
seu uso é incompatível com a visão de estado liberal que respeite a
liberdade.
Há duas formas pelas quais drogas afetam a cognição. Em primeiro lugar, há os efeitos imediatos ao consumir certas drogas. Os efeitos imediatos de alucinógenos
como o LSD e o PCP incluem rápidas alterações de humor, delírios,
alucinações, paranoia e um senso distorcido de si e do tempo. A heroína causa euforia seguida de náusea e do obscurecimento do funcionamento mental. Os efeitos imediatos da maconha
– frequentemente anunciada como uma droga “segura” – incluem ansiedade,
disforia e paranoia, juízo alterado, comprometimento cognitivo e
psicomotor.
Em segundo, estão os
efeitos a longo prazo do uso de drogas. Muitas drogas possuem efeitos
viciantes que afetam a liberdade de usuários de drogas ao exercer uma
poderosa influência sobre suas ações futuras. Viciados em drogas que se
tornam física e psicologicamente dependentes possuem seu senso de
autocontrole enfraquecido ou até mesmo destruído. Tais efeitos viciantes
podem interferir em outras áreas da vida de um viciado, afetando sua
habilidade de trabalhar, aprender, cuidar de si mesmo, interagir com
outros e criar relações. Eles podem impeli-lo a agir destrutivamente de
forma a alimentar o vício, afetando, assim, a liberdade de outros além
dele mesmo.
Adversários da
legalização das drogas tipicamente focam nos efeitos a longo prazo do
uso de drogas e suas repercussões em terceiros, especificamente crianças
e adolescentes. Essas são certamente preocupações muito sérias, mas os
efeitos imediatos do uso de drogas são por si mesmos suficientes para
mostrar que o uso recreativo de drogas é intrinsicamente contrário ao
bem da liberdade e da autonomia. Os adversários da legalização não
precisam recorrer aos efeitos em terceiros para formular seu argumento.
Vamos resumir o
argumento até agora. Uma das principais responsabilidades do governo é
proteger e promover a liberdade. Para fazer isto, ele deve também
proteger e promover as condições subjacentes que tornam a liberdade
possível, uma destas sendo a clareza de pensamento. O governo, assim,
tem um interesse em cultivar uma cultura que encoraje a clareza de
pensamento e o combate à alteração deste. Considerando que o uso
recreativo de drogas prejudica a habilidade do usuário de raciocinar, os
governos deveriam, portanto, estabelecer restrições legais sobre drogas
recreativas.
Em outras palavras, se você valoriza a liberdade, então você deveria se opor à legalização de drogas recreativas.
Proibição das drogas: mitos e realidades
Até agora eu defendi a restrição de drogas. Mas o termo “restrição” é vago. Que tipos de restrições o governo deveria adotar?
O governo deveria
proibir substâncias que não possuem nenhum uso legítimo além da
recreação. Além de torná-las mais difíceis de ser obtidas, a proibição
serve para impulsionar o custo das drogas, o que em troca reduz a
demanda ao torná-las mais caras. É simplesmente uma questão de oferta e
procura: quanto mais caro algo for, menos as pessoas estarão dispostas a
comprá-lo. A ameaça adicional da punição legal também serve para
diminuir a demanda. Por outro lado, se algo for barato, legal e
amplamente disponível, as pessoas estariam mais inclinadas a comprá-lo.
A legalização tornaria as drogas mais baratas e mais disponíveis, o que, por sua vez, aumenta o uso. Um estudo de 2015 no Journal of Health Economics
descobriu que a legislação sobre a maconha medicinal aumentou o uso
desta em adultos e adolescentes. Em adultos de 21 anos ou mais, a
frequência do consumo excessivo [binge] de álcool também aumentou. Da
mesma forma, um estudo de 2017 publicado na JAMA Psychiatry
descobriu que “leis sobre o uso de maconha medicinal parecem ter
contribuído para o aumento na prevalência do uso ilícito de cannabis e
de transtornos decorrentes do consumo de cannabis”. O aumento de
disponibilização também é associado ao aumento no uso de outras drogas, incluindo o álcool.
A proibição torna as
drogas mais caras e menos acessíveis, o que, por sua vez, reduz o
consumo. A proibição do álcool, que muitos pensam ter acabado como um
fracasso, na verdade reduziu o consumo de álcool per capita em cerca de 30 a 50 por cento.
Números de mortes por cirrose, internações em hospitais psiquiátricos
estatais por psicose alcoólica e prisões por embriaguez ou conduta
desordeira também diminuíram dramaticamente.
Embora seja verdade que a lei seca fracassou em seu fim, ela falhou por razões políticas.
Em termos de redução no consumo de álcool, a proibição foi um sucesso.
E, considerando que o consumo excessivo de álcool prejudica a clareza de
pensamento (além do custo de 250 bilhões de dólares anuais que impõe à nação),
é válido questionar se não deveríamos trazer de volta alguma forma de
regulação severa sobre o álcool por razões já mencionadas.
É claro, nem todas as
drogas são utilizadas de forma recreativa. O álcool pode ser consumido
como um leve lubrificante social sem a intenção de ficar bêbado. Mas isso não é verdade sobre a maconha,
já que o objetivo do uso da maconha não-medicinal é “ficar chapado” (e,
como veremos, a maior parte dos casos do chamado uso “médico” é
indistinguível do uso recreativo). Ninguém fuma um baseado querendo
evitar a “viagem”. Assim também é com a heroína, a cocaína e outras
drogas. Essas drogas deveriam ser o centro da proibição, já que o seu
uso paradigmático é abuso, diferentemente do álcool.
É verdade que haverá
alguns que farão o esforço de obter drogas ilegalmente, mesmo que a
proibição esteja em vigor. Uma perfeita conformidade, no entanto, não é a
referência do sucesso quando se trata de legislação. Leis contra
assassinato, agressão e roubo não impedem que esses crimes aconteçam,
mas ninguém está propondo que legalizemos essas coisas.
Onde os libertários erram
Onde muitos
libertários erram em seu apoio à legalização das drogas é em sua
concepção de liberdade. Se pensarmos na liberdade apenas como a simples
habilidade de fazer escolhas, então é compreensível por que alguém
pensaria que restrições a drogas violam a liberdade individual, já que
tais restrições limitam nossa habilidade de fazer uma gama de escolhas.
Mas nem todas as
escolhas merecem ser respeitadas. Conforme observei antes, nós não
podemos respeitar a liberdade sem também respeitarmos as condições que
tornam a liberdade possível. Uma dessas condições é a preservação e a
manutenção do bom funcionamento das capacidades cognitivas. As livres
escolhas que devemos respeitar, assim, não podem buscar abalar essa
condição. Já que o uso recreativo de drogas busca afetar a clareza de
pensamento, a escolha de participar dessa atividade não deve ser
respeitada.
Isso não é, como
alguns teóricos da política liberal podem contestar, adotar uma
concepção “moralizante” de liberdade. Em vez disso, está-se recorrendo
às condições estruturais necessárias para dar sentido ao respeito à
liberdade de acordo com qualquer concepção de boa vida.
De fato, seria
estranho argumentar que o objetivo do Estado em promover a liberdade é
cumprido ao permitir que seus cidadãos prejudiquem a sua própria
liberdade. A decisão inicial de se envolver no uso recreativo de drogas
pode ser livre, mas o resultado final é a diminuição da liberdade. Não
se pode exercer a liberdade suprimindo-a, assim como não se pode ficar
saudável ficando doente. A ideia de que o uso recreativo de drogas pode
ser justificado por meio do recurso à autonomia ou à liberdade é, assim,
autodestrutiva, da mesma forma que beber água do mar como o remédio
para a sede é contraproducente em si mesmo.
Alguns argumentam que
existe um direito moral de consumir drogas derivado de nosso direito de
posse sobre nossos próprios corpos. De acordo com o filósofo libertário Michael Huemer,
“é difícil ver como alguém que acredita em direitos poderia negar que
[...] o uso de drogas, tido apenas como algo que altera o corpo e a
mente do usuário, seja um exemplo do exercício do direito da pessoa
sobre o seu próprio corpo e mente”.
Há diversos problemas
com o argumento de Huemer. Primeiro, não se segue de ter direito sobre o
próprio corpo que estes direitos sejam absolutos e ilimitados. Muitas
tradições filosóficas estabeleceram que nós temos deveres de auto
respeito para conosco mesmos, como deveres de preservar nossa própria
saúde, nossa integridade pessoal e de desenvolver nossos talentos.
Se esses deveres existem, então eles poderiam contar contra o direito moral de rebaixar o funcionamento cognitivo de alguém. Os apelos à autonomia corporal dependem da teoria moral subjacente que adotamos,
e a concepção de auto propriedade de Huemer não é diferente. Huemer
pressupõe uma controversa antropologia filosófica que precisa ser
justificada – e não nos dá qualquer razão por que devamos aceitá-la.
Também não adiantará
argumentar, como alguns libertários fazem, que o defensor da proibição
das drogas deve também estar comprometido em banir comidas gordurosas,
refrigerantes e similares. O argumento que eu dei aqui pertence apenas
às atividades que são intrinsecamente destrutivas à clareza de
pensamento, o que comidas não saudáveis (que tipicamente só são assim se
consumidas em excesso) não afetam. Assim, essa objeção simplesmente não
se aplica.
E a maconha medicinal?
Meu foco tem sido o
uso recreativo de drogas, mas é válido discutir brevemente a chamada
utilização “médica” de drogas (especificamente, a maconha), já que essas
são questões políticas que muitos defensores da legalização das drogas
exploram para transformar em uma completa legalização recreativa.
Há pesquisas que mostram
que a cannabis ou os canabinóides podem ajudar com a administração da
dor, náusea, vômito e com a espasticidade decorrente da esclerose
múltipla. No entanto, estas mesmas pesquisas também encontraram fortes
evidências que a cannabis ou os canabinóides podem afetar negativamente a saúde respiratória, levar ao desenvolvimento de esquizofrenia ou outras psicoses e aumentar o risco de envolvimento em acidente automotivo. Então, os supostos benefícios da maconha devem ser contrabalançados com os efeitos negativos à saúde decorrentes do uso dela.
Além disso, não há
realmente uma necessidade fundamental de maconha medicinal, considerando
que há diversos outros medicamentos capazes de auxiliar nas mesmas
enfermidades em que a maconha poderia ajudar. Assim, embora eu esteja
aberto, a princípio, a permitir certos tipos de maconha medicinal (desde
que esta passe pelo mesmo rigoroso processo pela qual outros
medicamentos são aprovados), isso parece desnecessário. E, considerando
os riscos da maconha para a saúde, seria insensato e imprudente
legalizar a maconha sob pretexto médico.
De fato, a maconha medicinal é a preparação para o abuso. Em estados com programas de maconha medicinal, a grande maioria dos usuários são homens adultos jovens que alegam “dor” como a razão pela qual precisam de maconha.
Apenas uma pequena porcentagem utiliza a maconha por outras razões.
Dor, é claro, é uma razão muito vaga que é muito simples de ser forjada,
então isso abre um caminho para que os usuários recreativos possam
obter maconha sob o falso pretexto da medicina. Parece, então, que os
programas de maconha medicinal fornecem um disfarce para o uso
recreativo que equivale à legalização total. Assim, de fato há um
argumento a ser feito sobre estender a proibição das drogas à chamada
maconha medicinal.
No fim das contas
Para ser claro, o
argumento que ofereci não é que o uso recreativo de drogas deve ser
restringido porque não é saudável ou porque é imoral. Em vez disso, o
argumento é de que o uso recreativo de drogas compromete e prejudica as
condições de liberdade e, assim, a legalização de drogas recreativas é
incompatível com a visão de um Estado que respeita a liberdade.
Como John Stuart Mill
disse, “o princípio da liberdade não pode requerer que alguém seja
livre para não ser livre. Não é liberdade ser permitido alienar a sua
liberdade”. Uma sociedade que valoriza a liberdade deve cultivar uma
cultura que encoraja a clareza de pensamento e combate à sua
debilitação. Por isso, drogas recreativas devem ser legalmente
proibidas. Libertários, consequentemente, devem se opor à legalização
das drogas.
Timothy
Hsiao é professor de humanidades na Universidade Grantham. Seu site é
timhsiao.orh. Este texto é adaptado de seu artigo “Why Recreational Drug
Use is Immoral”, que sairá na National Catholic Bioethics Quaterly.
©2018 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário