Talvez tenhamos sofrido um transplante de consciência, mas não deu certo. Fernando Gabeira, no jornal O Globo:
Vendo o anúncio da
série “Altered Carbon” tive uma estranha intuição sobre o que acontece
no Brasil. A ideia central é o transplante de consciência de um corpo
para outro. Creio que o filme deve levar a refletir também sobre o tema
do momento: a inteligência artificial. Talvez tenhamos sofrido um
transplante de consciência, só que foi uma operação que não deu certo.
Alguns mecanismos deixaram de funcionar ou foram rejeitados pelo cérebro
receptor.
Um exemplo: a decisão
de Michel Temer de nomear Cristiane Brasil como ministra do Trabalho.
Ela foi processada duas vezes na Justiça do Trabalho. Sua nomeação foi
bloqueada. Temer insiste.
Com o caso prestes a
ser julgado no Supremo, Cristiane Brasil aparece num barco dizendo
barbaridades. O que mais repercutiu foi a forma de sua aparição, cercada
de homens sem camisa, gritando “É isso aí, doutora”.
Mesmo se estivesse
num convento cercada de piedosos frades, ela simplesmente mostrou que
não conhece o tema para o qual foi designada: “Não sei quem passa na
cabeça dessas pessoas que entraram na justiça contra mim.”
Ao dizer isso,
revelou uma falha abissal na sua consciência política. Não ficou claro
se ao pronunciar “quem” no lugar de “o que”, ela estava se referindo a
uma possível entidade que baixa na cabeça das pessoas — um exu, uma
pombajira — quando decidem reclamar seus direitos.
Temer diz que é uma
escolha política. Entende por política apenas a relação com o Congresso.
Falta nele a dimensão da sociedade. Acredita que basta frequentar
programas populares de tevê. Falhas na operação de transplante.
A consciência de
Itamar Franco, transplantada com êxito, não hesitaria diante do
problema. Ele afastava ministros apenas por aceitarem hotel pago pela
Odebrecht.
Foi tudo muito
alterado no carbono político brasileiro. Os trabalhadores são insultados
com uma escolha de uma ministra processada na Justiça do Trabalho, que
nem sabe que santo baixa nas pessoas que reclamam direitos trabalhistas.
No passado, as
entidades sindicais protestariam. Mas não se ouvem seus lamentos, nem
nas ruas nem no Congresso. Algumas se concentram na defesa de seu líder
condenado; outras estão envolvidas no toma-ládá-cá de Brasília.
A alteração
transforma a cena política brasileira num show de horror. Uma ministra
indicada dizendo aquilo e os homens sem camisa afirmando: todo mundo é
processado na Justiça do Trabalho.
Quando digo show de
horror não estou fazendo nenhuma alusão aos problemas que preocupam
Temer. Ele confessou que sofria muito com a história de que estava
ligado a práticas satânicas.
Tudo isso é uma bobagem. Assim como também acho injusto o apelido que ACM deu a Temer: mordomo de filme de terror.
Convivi com Temer
alguns anos e o acho uma pessoa tranquila. Ele se parece com uma pessoa
cordial. Não há nada de errado externamente. O problema foi esse
possível transplante de consciência que não deu certo. Alguns reflexos
desapareceram.
As evidências mostram
como seu projeto de investir em Cristiane Brasil é um equívoco
político. Mas em vez de dar graças a Deus porque juízes bloquearam a
nomeação, decide lutar até o fim.
Vão morrer abraçados,
Cristiane, Temer, os quatro homens sem camisa e até o ministro Carlos
Marun, que, desde o tempo em que defendia Eduardo Cunha, não tem a tecla
contato com a realidade social.
“Vocês queriam que
ela estivesse de burka?”, perguntou Marun aos repórteres. Ninguém a quer
usando burka ou biquíni. O que a consciência dos políticos precisa
incorporar é simplesmente isto: é errado nomear não apenas acusados de
corrupção mas também pessoas que ignorem o conteúdo de sua pasta.
Marun está para Temer
como estava para Cunha: pronto para defender o chefe, não importa se as
circunstâncias são constrangedoras.
Com a mesma expressão
séria com que afirmava a inocência de Eduardo Cunha, agora se dedica
não só a atacar procuradores mas a defender o direito de Temer de
indicar seus ministros, sejam quem forem.
Neurônios se perderam
na operação, sinapses tornaram-se impossíveis. Interessante é que
chamam isso de política. Não percebem que para a própria sociedade,
política é algo muito mais amplo e aberto.
O aliado maior de
Temer, o PT, queria nos convencer que o objetivo último da vida é
consumir eletrodomésticos e viajar de avião. Em nome dele, valia tudo. A
parte da quadrilha que sobreviveu quer nos fazer crer que o objetivo
central da vida é uma aposentadoria segura. Em nome dela, vale tudo.
O vírus chamado fins
justificam os meios acabou se introduzindo na consciência com tanta
força na cena política, e talvez seja ele que acionou a degradação do
programa mental, tornando a política algo tão vulgar quanto uma
pornochanchada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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