Vão, malandras: mulheres presos com munição escondida e o benefício da libertação coletiva. |
Desde que Bertolt Brecht escreveu “O que é roubar um banco comprado a fundar um banco?”, a situação piorou muito.
O “capitalismo”,
entre aspas, não apenas continua a ser culpado pelos piores crimes, como
banqueiros, uma categoria que por definição costuma aprender rápido,
passaram a financiar variações desta falácia ideológica.
Grandes financiadores
de organizações não-governamentais bancam a mesma interpretação, no
Brasil, nos Estados Unidos e em outros países.
O desejo sincero de
resolver uma das questões mais complicadas de todas as sociedades – como
punir o crime e recuperar criminosos sem produzir injustiças e
distorções – foi pervertido a ponto de transformar perpetradores em
vítimas e vítimas em perpetradores.
Um exemplo recente,
de assustadora banalidade: andar de celular na rua e, pior ainda,
empunhá-lo para fazer uma foto, é um ato de provocação insuportável ou
pelo menos suficiente para explicar por que o cidadão incauto, quando
não ostentador, é furtado ou roubado.
Isso foi dito, como
muitos se lembram, por uma autoridade de segurança durante o carnaval do
caos que ensejou a intervenção no Rio de Janeiro.
A inacreditável
quantidade de argumentos asnáticos desencadeada por esta intervenção
pode ser resumida no mais frequente deles: os “fantasmas” do regime
militar.
O regime ditatorial acabou há 33 anos. Mais de 60% dos 205 milhões de brasileiros nasceram depois do final do processo, 1985.
(Breve intervalo para
falar de outro aspecto do “fantasma”: blocos para pular o carnaval
foram transformados em manifestações de reocupação das ruas, inédita
desde a ditadura na imaginação dos loucos por uma causa mais nobre do
que saracotear sem freios. Carnaval com causa é, claro, uma chatice.)
Suspeitar de
intenções políticas na intervenção na segurança do Rio é perfeitamente
legítimo. Mas é espantosa a total falta de solidariedade humana dos
habitantes da “bolha” – comentaristas; políticos, nesse caso, de
oposição, e ongueiros – com o descalabro vivido pela população do Rio,
entre outras.
Aliás, mais de 70%
dessa população aprova a intervenção. Só pode ser coisa de povo burro,
incapaz de perceber seus próprios interesses, é o que transparece dos
sermões dos bem pensantes.
Organizações com
nomes enganosamente oficiais pregam maluquices que seriam ridículas se
não tivessem tanta projeção na defesa de suas causas-fim: liberação das
drogas, desmilitarização da polícia e eliminação da superpopulação
carcerária através da soltura de presos.
Vejamos o que
escreveram integrantes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, um nome
de impacto para uma ONG relativamente pequena, apesar do financiamento
de gente grande – as fundações Ford e Open Society, de George Soros.
“O comércio de algumas drogas específicas foi eleito como o grande mal da vida contemporânea, inimigo número um do povo.”
Notem o “algumas” e o
“específicas”, indicando a inocência das coitadinhas. “Foi eleito”, é
óbvio, significa que emanou do império do mal, os Estados Unidos.
“Inimigo número um do
povo”, tem alguma dose de razão, pelo menos se por “povo” se entender
mães com filhos adolescentes em bairros pobres, a população mais
ameaçada pelas desgraças isoladas ou simultâneas do crack e do tráfico.
Continuando: “Mas, em
outra direção, a população acredita no ditado ‘Bandido bom é bandido
morto’ e temos uma das polícias que mais morrem e matam em conflitos
cotidianos.”
A primeira parte já
foi explicada: o povo é burro na visão desses sapientes. Tradução de
polícia que “morre e mata”: basta liberar as drogas e os policiais
viverão felizes para sempre. Ou talvez nem sejam mais necessários.
Tem mais, na mesma
linguagem bizarra. “O poder das facções criminosas flui mais
intensamente quanto maior o estoque de pessoas que têm à disposição para
controlar, poder que se estende sobre os familiares das pessoas presas e
se espalha por comunidades e bairros inteiros.”
Já deu para perceber
onde querem chegar? Pois a coisa continua. “Quanto maior a população
carcerária, mais complexo é o manejo do cotidiano prisional por parte
dos agentes que colocamos lá para guardar essas muralhas.”
Se o problema é o
grande número de frequentadores do “cotidiano prisional”, basta uma
solução mágica: diminua-se a sua quantidade. Os agentes penitenciários,
como os policiais, viverão felizes para sempre.
Sem contar com chefes
de organizações criminosas que, sem seu ‘estoque de pessoas”, passarão a
se dedicar à pesca esportiva ou ao estudo de Brecht.
Mas existe um inimigo
malvado que impede isso. “Juízes e juízas com visão garantiste, que
evitam a prisão provisória para crimes sem violência, que compreendem o
fracasso da guerra às drogas são pressionados a adotar posturas de mão
dura pelo andar de cima nos tribunais de justiça.”
Aí, claramente,
existe um exagero: o andar mais alto da justiça acaba de resolver que
todas as presas grávidas ou mães de filhos até 12 anos em regime
preventivo passam a desfrutar de habeas corpus coletivo.
Quem propôs o fim da
isonomia, ou da igualdade de todos perante a lei, um dos fundamentos do
estado de direito e da democracia? O Coletivo de Advogados em Direitos
Humanos. O “em” dá o toque de modernidade. Os supremos concordaram.
Do total de mulheres
presas, 63% estão relacionadas ao tráfico de drogas. O número dobrou em
dez anos, o que pode ser atribuído a várias causas: o tráfico aumentou
seguindo as facilidades de consumo, traficantes aperfeiçoaram as
vantagens de usar mulheres como emissárias, o crescimento de homens
envolvidos no crime “puxou” o de suas companheiras que fazem tudo por
amor e até, evidentemente, a deterioração das condições
sócio-econômicas.
Não esperem ver
nenhuma discussão a respeito. Esse aumento, invariavelmente, é atribuído
à “guerra às drogas”, uma expressão criada pelo governo Reagan nos anos
80 que foi ressuscitada nas campanhas em favor da liberação de
entorpecentes.
Os Estados Unidos são
considerados pelos partidários da liberalização de tudo um mau exemplo
por terem a maior quantidade de presos do mundo. O Brasil então, com o
terceiro lugar e as condições indiscutivelmente atrozes em muitas
penitenciárias, nem se fale.
Proibir ou liberar o
uso e a comercialização de drogas é uma questão relativamente importante
em sociedades onde elas são consumidas.
Em alguns países e em
estados americanos, o eleitorado decidiu que vale a pena correr o risco
de legalizar a maconha, acreditando que assim a criminalidade que
acompanha o tráfico vai diminuir, mesmo que aumente a porcentagem de
usuários que se tornam viciados com comportamentos destrutivos.
Nos Estados Unidos, o
maior problema de drogas atualmente é causado por uma mistura de
medicamentos da família dos opiáceos sintéticos, o anestésico fentanil e
cocaína . Os números de fatalidades por overdose são espantosos: cerca
de 60 mil mortos em 2017. Mais do que em toda a guerra do Vietnã.
Diante dessa
catástrofe, a maconha pode parecer até benigna. O cálculo sobre
vantagens e desvantagens da legalização de drogas pode ser comparado ao
que é feito em relação à posse de armas.
Apesar de crimes
pavorosos como as matanças em escolas, mais de 70% dos americanos
acreditam que a segunda emenda da constituição é uma garantia inviolável
ao direito de ter armas – quais, de que calibre e em que condições,
evidentemente, sempre está sujeito a discussões e mudanças.
Nikolas Cruz deve
assumir a culpa pelos 17 assassinatos na matança na escola da Flórida.
Com isso, ele não corre o risco de pegar a sentença de morte. A Flórida é
um dos 31 estados americanos onde ela continua a existir.
Aparentemente, há
poucos americanos discutindo se o perturbado assassino de 19 anos vai
aumentar a população carcerária até o fim de sua vida.
A discussão sobre
armas é politizada e até violenta nos Estados Unidos. Num dos extremos,
dizem que Donald Trump e o NRA têm “sangue nas mãos” e a expressão lobby
das armas é constantemente esgrimida .
Por mais abiloladas
que sejam várias de suas posições, o NRA nem lobby de fabricantes é, e
sim uma associação com cinco milhões de membros que pagam anuidade e
fazem contribuições maiores quando acham necessário.
No outro extremo, o
tamanho da tragédia chega a ser minimizado. Os mais malucos acreditam
que todas as matanças do tipo são falsas, montadas para cassar o
venerado direito a armamentos.
Por enquanto, pelo
menos, não apareceu ninguém para dizer que Nikolas Cruz, razoavelmente
branco e aparentemente adepto de disparates racistas, é uma vítima da
sociedade.
Sem essas
características, já teria aparecido. E quem sabe o que pode acontecer se
decidir mudar de gênero e ir para uma penitenciária feminina?
Na peça A Decisão, de
1930, Bertolt Brecht não apenas justifica a morte de um jovem militante
que põe em risco a missão secreta de quatro agitadores comunistas. O
próprio jovem pede sua execução, no que é prontamente atendido. O corpo é
jogado numa mina de cal.
Foi praticamente uma
premonição dos grandes expurgos stalinistas, quando os mais fiiéis
comunistas eram fuzilados dando vivas ao camarada Stalin.
Sem a vantagem do
fanatismo que tudo justifica, até a própria morte, brasileiros
agredidos, assaltados, sequestrados e baleados acabam colocados na
posição de se desculpar aos criminosos. E, claro, chamados de golpistas –
no caso, o original, do longínquo 1964.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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