"É injustificável o acordo do bamba do abate com o procurador-geral e o ministro do STF", escreve Josê Nêumanne:
As
lições de educação moral e cívica, que o bamba do abate Joesley Batista e
o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, têm ministrado em
manifestações impressas e pronunciamentos públicos estão a merecer
correções para separar nelas o joio do trigo. Da mesma forma, as
tentativas que a principal vítima da dupla, o presidente Michel Temer,
faz de desviar a atenção da República em pandarecos por causa do
encontro secreto dele com o marchante no porão do Jaburu não justificam
os desvios éticos que ele próprio cometeu no episódio e que não podem
ser aceitos de ninguém, muito menos de alguém no exercício da
Presidência da República.
Joesley
age como se fosse um herói de capa e espada, alegando que sacrificou
rotina, segurança e fortuna pessoal e teve a vida ameaçada para
investigar e denunciar um caso escabroso envolvendo a maior autoridade
do País. E por isso se trasveste de defensor da lei e da ordem. A coisa
não é bem como ele propaga e o buraco fica bem mais embaixo. A delação
premiada exime seu autor de parte das penas (no caso dele, todas) de um
acusado, mas não torna automaticamente herói nenhum vilão – seja
delatado, seja delator.
O Brasil
é signatário dos três acordos internacionais de combate mundial aos
corruptos e suas organizações criminosas: a convenção da Organização
para Cooperação de Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 1997 (Lei
13.678, de 2000 – governo Fernando Henrique); o Tratado de Cooperação
Interamericana Contra a Corrupção, de 1996 (Decreto 4.410, de 2003 –
governo Lula); e a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, de
2003 (Decreto 5.687 de 2011 – governo Dilma Roussef).
Por
causa desses acordos e convenções, o Brasil adotou o instatuto da
delação premiada, incorporado à legislação americana nos anos 1970 e
também à italiana, com a Operação Mãos Limpas, nos anos 1990. A delação
premiada parte do pressuposto de que a colaboração de criminosos,
trocada por atenuação ou mesmo anulação de penas, é a melhor, se não a
única, forma de conseguir informações de apuração dificílima, quase
impossível, pelos métodos convencionais. Para dissolver e eliminar o
crime organizado, incluído o de corrupção, e para evitar a natureza
depreciativa dos termos delator, delação, premiado e prêmio, usa-se o
jargão colaboração com a Justiça, eufemismo que não exclui, contudo, a
condição de delinquente do acusado que prestou informações capazes de
facilitar o inquérito. Mas nem por isso deixa de ser definido como fora
da lei.
Joesley,
que obteve do Ministério Público Federal (MPF) a maior premiação dada
no Brasil a um acusado de delitos penais graves, acha que R$ 10 bilhões
pagariam o prejuízo que seus delitos deram à sociedade brasileira. E
lamenta que poucos mencionem a multa de R$ 10,3 bilhões que a holding
J&F aceitou pagar (a ser paga em 24 anos e carência de um), mercê do
acordo de leniência com as autoridades fiscais brasileiras. Ele parte
do pressuposto de que essa obrigação servirá para que as próximas
gerações de brasileiros jamais se esqueçam da lição exemplar do que não
se deve fazer. Ou seja, ele trata sua delação como didática, quase
benemérita. E somente isso lhe dá a certeza de que o tal acordo de
leniência firmado por sua empresa com as autoridades federais pagará
“com sobras” possíveis danos à sociedade brasileira. Quanta pretensão!
Não é
bem assim. A mirabolante história de uma família de marchantes do
interior de Goiás que se tornou proprietária de um conjunto de empresas
que produzem e comercializam o maior volume de proteína animal do
planeta precisa ser contada em detalhes. Ela não pode ser resumida nas
vantagens obtidas na aprovação de leis que favoreçam seus interesses com
a contrapartida de propinas milionárias pagas a altas autoridades dos
três Poderes. É preciso, em primeiro lugar, relatar como foi possível
adquirir essa fortuna a partir de empréstimos conseguidos, sabe-se lá
como, graças à benemerência dos responsáveis pela gestão do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) nos governos
petistas de Lula e Dilma. Joesley teve o desplante de dizer que só
manteve com os chefes dessas gestões o que ele chama de “conversas
republicanas”, sem se dar sequer ao luxo de relatar o teor de tais
contatos. Da mesma forma, trata o distinto público, que pagou com
impostos o patrimônio bilionário que acumulou, como uma tropa de bestas
quadradas, ao afirmar que só manteve com o presidente da instituição
pública oficial conversas de interesse coletivo. Nessas audiências a
coletividade entrou com o pagamento e ele, seus familiares e sócios
ficaram com os lucros de negócios da China.
A
indignação coletiva da sociedade brasileira pela exagerada premiação que
ele recebeu para delatar o presidente da República, Michel Temer,
também se mescla com episódios obscuros da negociação de seu acordo de
“colaboração com a Justiça. A principal delas é o fato de só ter falado
dos “indignitários” petistas de forma genérica e inconclusiva. Ele teria
administrado contas em seu próprio nome, mas em benefício dos
ex-presidentes Lula e Dilma, no valor de US$ 150 milhões, sem ter
guardado nenhum documento que os relacionasse às tais contas. E os
procuradores do gabinete do dr. Janot engoliram essa conversa fiada numa
boa.
O
procurador-geral ainda não deu uma explicação razoável sobre a
transferência do subprocurador Marcelo Miller, seu ex-subordinado, para
um escritório de advocacia que trabalhou para os Batistas na negociação
para a delação. O próprio Miller também nada explicou.
Os
irmãos Batista não são sequer questionados a respeito desse episódio,
que nenhum brasileiro de posse de suas faculdades mentais aceita. O
repórter Marcelo Godoy, do Estado, calculou pelos crimes,, sem o perdão,
ele seria condenado a 2 mil anos de perda de liberdade.
Em
relação tanto à gravação da conversa no Jaburu quanto à ação programada
com a Polícia Federal, na qual foi filmada a entrega da mochila com R$
500 mil ao assessor especial de Temer Rodrigo da Rocha Loures, não é
aceitável que o fato de a delação incluir a mais alta autoridade da
República compense o perdão de todas as penas ao delator. Essa pena não
aplicada, aliás, não permite a Joesley bancar o mocinho da fita
policial, já que os fatos que ele delatou não bastariam para tal perdão.
A
realidade dos fatos e dos delitos mostra que, ao subverter o sistema
eleitoral, como ele mesmo reconhece que fez, jogou o Brasil na mão dos
políticos safados, e não nas mãos dos políticos honestos. Os ladrões se
dispõem a ser corrompidos e a usar o dinheiro para comprar votos,
enganar o eleitor e distorcer o processo eleitoral. E agora conspiram na
Câmara para manter intactos os próprios pescoços. As balas perdidas e a
situação da saúde decorrem – pelo menos em parte – da ação nefasta
destes políticos mal-intencionados. O que Joesley fez custou vidas, além
da situação de penúria generalizada. Interferir ilicitamente no
resultado de eleições não tem preço. Corromper o sistema político não é
uma conta a ser debitada num cartão de crédito para ser quitada a perder
de vista.
Joesley
& Janot, com ajuda da mão esquerda do relator da Lava Jato no
Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Edson Fachin, acham que o
empresário quitou sua dívida com a sociedade ao gravar o presidente e
fazer a delação, ajudando a tirar do poder a quadrilha que ele ajudou a
eleger. Herói ele poderia ser se tivesse gravado uma conversa com Temer
pedindo-lhe propina e ele se negando a dar, como fez com Aécio. Aí, sim,
talvez pudesse posar de herói. Mas Joesley não é mesmo herói, e, sim,
um delator que escolheu denunciar o cúmplice quando não tinha mais
alternativa. Com a coragem de quem pula da janela de um prédio em chamas
sabendo que os bombeiros o esperam na calçada com rede.
Para
concluir, é indispensável acrescentar que nada disso justifica a atitude
de Temer, que, ao recebê-lo e conversar com ele nas condições em que
conversou, permitiu que o episódio gerasse uma crise política das
dimensões da que assola o Brasil hoje. Não há nesse filme noir só de
vilões nenhum personagem que não seja simplesmente indefensável.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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