Artigo de J. R. Guzzo na edição impressa de Veja:
Todos podem ir se
preparando desde já. Está aí à frente, tão certo quanto a próxima fase
da lua, o centenário da Revolução Comunista de Outubro de 1917 — e vai
se falar, escrever e discursar sobre o assunto como se o golpe de Estado
então comandado por Lenin, com a formação do regime soviético na
Rússia, tivesse sido o maior evento da história da humanidade desde que o
macaco desceu da árvore para arriscar a sorte na tentativa de levar uma
vida inteligente em terra firme. É curioso que o primeiro centenário da
Revolução de 1917 venha a ocorrer quando o regime criado por ela já não
existe mais — foi demolido, sem o disparo de um único buscapé por parte
dos adversários, em consequência de seus fracassos, sua demência
interna e suas enfermidades de nascença. É também interessante notar que
o regime revolucionário produziu uma ditadura absoluta do primeiro ao
último dia de sua existência. Vai se comemorar, nesse caso, a fundação
de uma ditadura que já terminou? A abolição do capitalismo no mundo,
objetivo final da revolução, transformou-se há longos anos numa piada,
por agredir ao mesmo tempo a natureza humana, o progresso, a tecnologia e
a razão. O comunismo, enfim, acabou sendo uma das experiências que
deram mais errado na história política dos seres vivos. De novo: dá para
comemorar uma coisa dessas? Sim, dá. Podem ter certeza de que dá.
É compreensível,
levando-se em conta a quantidade cada vez maior de “gente de esquerda”
espalhada hoje em dia mundo afora — e “gente de esquerda” tem entre os
seus deveres mentais prestar reverência automática a essas assombrações
do passado. Bem poucos, aí, sabem o que foi a Revolução Soviética ou
mostram a menor vontade de investir uma meia horinha do seu tempo
tentando aprender alguma coisa a respeito. Aprender para quê? O que
interessa é acreditar — o que, além disso, dá muito menos trabalho. A
verdade é que no momento é mais fácil ser de “esquerda” do que não ser;
as comodidades para isso são incomparáveis, e nem sempre foi assim. Ao
contrário, já foi difícil — e perigoso. Acredite se quiser, mas houve um
tempo neste país em que você podia acabar na cadeia por ser de
esquerda. Para Lenin, especialmente, sempre foi muito difícil ser Lenin.
Até assumir o comando da União Soviética, ou pouco antes, o homem
praticamente não tinha onde cair morto. Vivia a dois passos da prisão,
exilado, em desconforto material extremo, sem ajuda da mídia, dos
formadores de opinião e da classe artística. Ninguém chegava lá, na
época, financiado pelo imposto sindical, por comerciais de televisão
milionários e pelo caixa dois de empreiteiras de obras públicas. A vida
era dura. Para ser de esquerda, o sujeito tinha, realmente, de ser de
esquerda.
Hoje ser de esquerda
no Brasil é a coisa mais fácil desta vida. Você pode ser ministro do
governo de Michel Temer e ser de esquerda. Pode ser um Eike Batista e,
ao mesmo tempo, “campeão nacional” dos ex-presidentes Lula e Dilma
Rousseff. Pode ser o ex-governador Sérgio Cabral, que viveu anos como um
herói do PT. Pode receber prêmio literário de 100 000 euros, dos quais o
governo brasileiro paga a metade, e discursar contra o “golpe” na hora
de pegar o dinheiro. Pode ser ministro do Supremo Tribunal Federal,
depois de advogar para o maior partido da esquerda nacional ou para
“movimentos sociais” que se dizem “revolucionários”. Pode, como
militante, receber verbas do Banco do Brasil, cesta básica e lanche
quando é chamado para se manifestar na rua, além de diária e ônibus
fretado. Pode estar na cadeia por corrupção. Pode ter emprego no
Itamaraty. Pode ser reitor, procurador público, arcebispo. Pode
trabalhar na Rede Globo. Não precisa ler um único livro – Marx, então,
nem pensar. Não precisa, Deus o livre, exigir a extinção da propriedade
privada, sobretudo a sua. Não precisa entrar no PT e pagar contribuição
mensal de 10% do que ganha.
É preciso, apenas,
ter “posição” sobre uns tantos assuntos – mas quem já teve de tirar do
bolso um único real para “ter posição” sobre alguma coisa? Não num país
como o Brasil de hoje, onde, além do mais, o risco de aparecer como
“progressista” etc. está muito abaixo de zero. E quais são as “posições”
que o brasileiro interessado em tirar a sua certidão de “pessoa de
esquerda” deve assumir? Alguns exemplos:
– Ser a favor das
normas que permitem aos professores da rede estadual de ensino de São
Paulo faltar até um dia sim, um dia não ao trabalho, sem desconto nenhum
no salário, é claro – incluindo o vale-transporte e o
auxílio-alimentação referentes aos dias em que o professor não foi à
escola;
– Ser contra o
aumento da velocidade de tráfego, para um máximo de 90 quilômetros por
hora, nas avenidas marginais de São Paulo. Se possível, noticiar em tom
de denúncia que, logo no primeiro dia com os novos limites, ocorreu um
acidente de carro numa das marginais. O motorista estava bêbado. Além
disso, ninguém se machucou – nem ele;
– Ser contra qualquer
mudança na legislação trabalhista. Num momento em que 12 milhões de
brasileiros estão desempregados, sustentar que as pessoas não precisam
de emprego, e sim de proteção — mesmo que não tenham mais emprego nenhum
para ser protegido;
– Ser a favor da
aposentadoria das mulheres aos 50 anos, e de todas as regras parecidas
com essa — a começar pelas que permitem a aposentados do serviço público
ganhar mais de 50 000 reais por mês, ou 100 000, ou seja lá quanto for.
Considerar correto que a totalidade da população pague, no fim das
contas, a aposentadoria dos funcionários públicos — hoje, na média,
cerca de 7 500 reais por mês. É quase o equivalente ao valor médio da
aposentadoria dos funcionários públicos franceses, de 2 500 euros
mensais. O PIB per capita da França, pela última tabela do Banco
Mundial, é de 40 000 dólares por ano, quatro vezes o do Brasil;
– Ser a favor de
pichadores ou “grafiteiros” de paredes, muros, viadutos, em prédios
particulares e públicos. Considerar que quem não concorda está adotando
uma atitude “higienista” — ou seja, a favor da higiene, considerada um
hábito de direita;
– Ser contra o
“agronegócio” e a favor da “agricultura familiar”. E quanto aos
agricultores “familiares” que trabalham junto a grandes empresas
agrícolas? Não há resposta para essa questão. Comentários demonstrando
que o valor da terra, hoje, é dado pela sua capacidade de produzir, e
não pelo seu tamanho nem por outros fatores, são tidos como argumentos a
favor do “latifúndio”, do capitalismo na agricultura e do atraso. (A
área rural vai pôr 240 bilhões de reais em circulação no interior do
Brasil em 2017.)
– Ser contra os
defensivos agrícolas de qualquer tipo, descritos como “agrotóxicos”,
“venenos” ou “agentes químicos”. Considerar como ato de destruição da
natureza a utilização de qualquer área de terra para produção em grande
volume de alimentos. Denunciar como delito social o cultivo de pastagens
e a criação de animais de corte;
– Acreditar que a
única maneira de reduzir a pobreza é tirar dos ricos; a ideia de
alcançar esse objetivo por meio da criação de mais riquezas é
considerada de direita. Só o Estado, com a arrecadação de impostos —
que, idealmente, devem ser sempre maiores —, tem a capacidade de
distribuir renda. Cobrar imposto, por esse entendimento, é criar
riqueza. Pelo mesmo entendimento, os pobres só existem porque existem os
ricos. Na verdade, acredita-se que o 1% mais rico da população mundial
tirou a sua fortuna dos demais 99%;
– Assinar manifestos de intelectuais, mesmo que você confunda Kant com Clark Kent.
É o que temos, hoje. Adeus, Lenin. (Via Augusto Nunes).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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