Cresce o número de seguradoras que se recusam a cobrir os acidentes em grandes obras espalhadas pelo Brasil
por Carlos Drummond
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publicado CARTA CAPITAL
Lalo de Almeida / Folhapress
Disputas judiciais entre seguradas e
seguradoras são comuns, mas um tipo específico de conflito acumula
tensões em grandes grupos empresariais nacionais e estrangeiros
atingidos por sinistros em tempos recentes. A negativa, por parte de
seguradoras, de indenizações para companhias com empreendimentos de
vulto no País provoca insegurança jurídica e econômica e prejudica os
investimentos e a retomada do crescimento, reclamam as prejudicadas. A
frequência de casos do gênero é crescente. A julgar pelas reclamações
apresentadas à Justiça, algumas seguradoras, com o objetivo de evitar,
adiar ao máximo ou reduzir o valor da cobertura dos sinistros, recorrem a
expedientes ortodoxos e, não raro, a manobras heterodoxas também. O
resultado é o prolongamento do tempo de tramitação dos casos, com o
desgaste das seguradas e a diminuição das indenizações negociadas.
CSN, Odebrecht, Alumar, Braskem, Anglo
American, Gerdau, Açominas e outros grandes grupos compõem a lista cada
dia mais extensa de segurados prejudicados por negativas de cobertura de
sinistros por parte de suas seguradoras. O caso da Anglo American,
ressalvadas as especificidades, é didático por conter elementos comuns
aos demais. A Itaú Seguros alegou negligência da segurada para negar a
cobertura de um acidente e esta aponta manipulações e insuficiência de
provas da primeira com o objetivo de protelar o pagamento da
indenização.
O acidente destruiu o porto privado da
Anglo American no Rio Amazonas, na localidade de Santana, adjacente a
Macapá, no Amapá, na madrugada de 28 de março de 2013. Em menos de um
minuto, o atracadouro e um pedaço do continente foram arrastados pelas
águas. Uma câmera de segurança instalada no porto registrou o início do
desastre, rio acima, com o desaparecimento de um poste de iluminação
localizado a cerca de 150 metros das pilhas de minério acumuladas no
pátio do porto. Seis trabalhadores morreram e houve grandes prejuízos
materiais.
Um documento recente anexado ao processo
movido pela empresa inglesa contra a Itaú Seguros pela negativa de
cobertura, no valor de 360 milhões de reais, deve contribuir para o
esclarecimento das causas desse sinistro. Segundo o estudo elaborado
pelo engenheiro geotécnico Sandro Salvador Sandroni, professor da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutor pela
Universidade de Londres, não houve negligência da mineradora. “Os
depoimentos que serviram de base para o relatório da autoridade marítima
e para os peritos que trabalharam para a seguradora nunca indicaram a
presença das pilhas de 110 mil toneladas na parte baixa do terminal,
próximo ao rio, apontada pela seguradora para alegar negligência (por
suposto excesso de peso no terreno) e negar a indenização. Todas as
demais evidências confirmam não existirem, nos lugares em que foram
imaginadas pelas perícias da seguradora, as imensas pilhas (de minério
de ferro) confessadamente presumidas pela seguradora”, concluiu
Sandroni, após extensa análise técnica.
As pilhas, inexistentes
nos locais apontados pela Itaú Seguros, segundo o laudo do geólogo,
foram adotadas como “premissa básica e determinante da hipótese de
ruptura por excesso de carga em local inadequado”. Teria ocorrido ainda
indução ao erro, pois as universidades contratadas pela seguradora para
reforçar a tese “confiaram nessa falsa premissa, o que invalida as
conclusões alcançadas”. Segundo as análises, o sinistro foi provocado
pela presença de um solo de rara ocorrência no Brasil, denominado argila
sensível.
O estudo do geólogo reforça o teor do
depoimento feito em junho deste ano por Mario Bicalho de Figueiredo,
superintendente de Sinistros da Itaú Seguradora na época do desastre. Em
um boletim de ocorrência, o executivo confirmou a sua recomendação para
a cobertura securitária da Anglo American, em sintonia com o parecer da
Crawford Brasil Reguladora de Sinistros.
“Nunca tivemos esse tipo de problema no
mundo. É muito difícil explicar para a matriz. Sabemos, por contato com
outras empresas, que a negativa de cobertura tem ocorrido com certa
frequência. A gritaria é geral. As pessoas têm de tomar muito cuidado
quando escolherem uma seguradora”, diz Gerson Rego, gerente-geral
Jurídico da Anglo American Brasil.
No processo movido para a cobrança do
seguro, a mineradora inglesa aponta procedimentos da seguradora que
considera de difícil justificação. A empresa estranhou
o silêncio e a demora, superior a um ano, na regulação do sinistro. A
regulação é uma atividade usual no ramo e destina-se à compreensão da
natureza do sinistro e à mensuração dos prejuízos indenizáveis. Depois
de receber o laudo da Crawford, uma das maiores reguladoras do mundo,
favorável à indenização, a Itaú Seguros contratou a empresa UON, do
mesmo ramo, que emitiu um parecer contrário à cobertura. Entre os
documentos entregues pela Itaú Seguradora à Anglo American por força de
uma decisão judicial, foi encontrado o relatório da Crawford com a
proposta de indenização. Outro laudo com logotipo dessa empresa, mas sem
assinatura, contém parecer desaprovador da indenização.
Para a mineradora,
há muitos fatos atípicos no comportamento da seguradora. Supostos
excertos de depoimentos sobre a localização de grandes pilhas de minério
na parte menos resistente do pátio do porto, junto à margem, não
encontram correspondência nos teores desses mesmos depoimentos, alega a
empresa inglesa. Horas depois de negar a cobertura, a seguradora entrou
com ação, assinada por três escritórios de advocacia no Rio de Janeiro,
contra o pleito de indenização apresentado pela Anglo American. O fato
de a ação ter o dobro de documentos em relação à quantidade apresentada
para justificar a negativa de cobertura levou a mineradora a concluir
que não foi comunicada adequadamente sobre as razões para a negativa de
pagamento.
A Anglo American considerou abusiva a
argumentação da seguradora sobre a existência, na apólice, de exclusão
de cobertura para danos decorrentes de deslizamento de terra. Primeiro,
por não considerar que houve um deslizamento, mas uma ruptura seguida de
liquefação do solo. Depois, pelo fato de a exclusão não constar da
apólice emitida pela Itaú Seguros. Para ocorrerem alterações no texto
das apólices, é preciso emitir aditamentos contratuais, chamados de
endossos, a serem entregues obrigatoriamente ao segurado, por
formalizarem mudanças nas cláusulas do contrato de seguro. No caso
específico, a exclusão de deslizamento alegada pela seguradora foi
inserida na apólice do seguro meses depois de ocorrido o sinistro, por
meio de endosso emitido pela seguradora e nunca enviado à segurada. A Itaú Seguros não quis comentar o caso.
Para Jonathan Cook, gerente mundial de
Riscos da Anglo American, “o modo com que foi feito o processo de
ajustamento da perda e o comportamento da Itaú Seguradora e seus
resseguradores, no que se refere ao sinistro do porto de Santana,
continua a ser motivo de grande preocupação e surpresa para a Anglo
American. A nossa preferência é sempre trabalhar com seguradores e
reguladores para entender a causa das perdas e quantificar o impacto
financeiro em uma base amigável. Entretanto, na ausência de uma mudança
de atitude da Itaú Seguros e dos seus resseguradores, nós não temos
outra opção a não ser continuar em busca de um acordo justo através das
cortes de Justiça. Pode ser um processo longo e custoso e, como
resultado disso, o mercado brasileiro de seguros vai sofrer, na medida
em que clientes começarem a questionar o valor real do seguro que
adquiriram”.
A responsabilidade
das seguradoras nos casos de negativa de cobertura deve ser avaliada no
contexto das empresas resseguradoras, presença obrigatória quando se
trata de coberturas de grandes proporções. Pressionadas pelas
seguradoras, elas têm dificultado o pagamento de sinistros. O problema
assumiu proporções suficientes para um dos casos ser levado a uma câmara
de arbitragem especializada em Londres. A corte foi acionada pelas
seguradoras, que obtiveram uma decisão que obriga as empresas do
consórcio de Jirau a não praticar mais nenhum ato judicial no Brasil. O
consórcio conseguiu no País uma decisão contrária àquela da corte
inglesa, mas o risco de prisão dos diretores e de penhora do patrimônio
das empresas em caso de desobediência levou ao menos uma parte da
indenização a ser discutida em Londres.
O mercado de seguros desempenha
papel-chave na administração e transferência de riscos na economia. A
aparente generalização da recusa em indenizar seguradas em sinistros de
grandes proporções indica a possível existência de um problema
sistêmico, com ameaça aos empreendimentos e prejuízo ao País.
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