Tenho pavor
de gente que quer "mudar o mundo". Os exemplos históricos dessas utopias
são catastróficos. A realidade é sempre mais complexa que as
idealizações, individuais ou coletivas. Estas, geralmente, não passam de
tiro no escuro. A propósito, um interessante artigo de Reinaldo
Azevedo, hoje, na FSP:
Tenho me
dedicado, nem poderia ser diferente, a tentar entender o pensamento de
Marina Silva -- há gente assegurando que ela vai presidir o Brasil. Mas é
tarefa difícil. E rio daqueles que, julgando compreendê-lo, criam suas
próprias metáforas para desentranhar as da candidata do PSB à
Presidência, de sorte que, depois de alguns minutos de conversa, estamos
todos no reino da alegoria, lá onde uma coisa puxa a outra rumo a lugar
nenhum. Malsucedido no meu esforço, recorro, então, a Eduardo
Giannetti, que parece ser o Platão redivivo que, desta feita, encontrou
um bom Dionísio.
Marina
reuniria as características da "Rainha Filósofa". Se ela fizer como
Giannetti recomenda, conseguirá expulsar da política os cartagineses do
PMDB e teremos, então, um governo dos "bons e dos virtuosos". A Siracusa
do Planalto Central nunca mais será a mesma. Ou, quem sabe?, o pensador
de agora se veja no papel de um Pigmaleão a esculpir a mulher ideal.
A esta
Folha, Giannetti disse que sua "Tirana (no bom sentido, claro!) de
Brasília" pretende governar com o apoio de FHC e de Lula, embora a
própria Marina, em suas intervenções públicas, a despeito de reconhecer
as contribuições de PSDB e de PT à democracia, anuncie que é chegada a
hora de pôr fim à era do confronto entre os dois partidos. Ou por outra:
para as elites políticas, o Platão da Marina diz que vai governar com
Lula e FHC; para o eleitorado com ódio da política, ela assegura, de
modo oblíquo, que não será nem com Lula nem com FHC.
A
"Fórmula Marina", que Giannetti reproduz com impressionante ligeireza
para quem tem preparo intelectual, é composta de ingredientes falsos ou
de baixíssima qualidade. Marina seria o momento da síntese de uma tese e
de uma antítese já manifestas. Ou, nas palavras do nosso Platão a este
jornal, tentando certamente ser simpático com as duas personagens que
cita: "FHC tem compromisso com a estabilidade econômica, nós também.
Lula tem compromisso com a inclusão social, nós também. Vamos trabalhar
juntos. Acho possível. Se a democracia brasileira tem razão de ser, é
para que isso possa acontecer".
Abstenho-me
de comentar o fato de o entrevistado, imodesto, ter descoberto nada
menos do que "a razão de ser da democracia brasileira", encarnada, por
acaso, em Marina, sob seus diligentes cuidados, é certo! Vou considerar
que foi apenas uma distração retórica, não uma húbris... Inferir que FHC
não teve compromisso com a inclusão social é uma falácia não menor do
que a sugestão de que Lula se descuidou da estabilidade. À sua maneira,
cada um dos ex-presidentes foi a síntese das contradições dos
respectivos governos que lideraram. Ou será que Marina chega agora para
ser o fim da história, o "último homem"?
De resto,
a versão de que ao PSDB interessava mais a estabilidade do que a
justiça social é só uma história porca narrada pelo petismo. A sugestão
de que o PT só distribui benesses sem se ocupar das contas é só um
reacionarismo tosco. Minhas severas restrições a esse partido têm a ver
com suas taras autoritárias, com seu jacobinismo estúpido, não com seu
viés social --de valores essencialmente conservadores, diga-se (mas isso
fica para outra hora).
Notem que
nem me atenho aqui às barbaridades defendidas por Marina durante a
votação do Código Florestal ou à sua luta obscurantista contra os
transgênicos. Também a preservo do passado mais remoto, quando, fiel ao
petismo, ofereceu batalha contra o Plano Real e a Lei de
Responsabilidade Fiscal. Abstenho-me de tratar da rede de crimes que
envolve aquele avião, da qual ela foi, obviamente, beneficiária, o que
poderá resultar até na cassação de um eventual mandato se a lei for
cumprida (ou me demonstrem que não). Esses são assuntos, digamos,
contingentes, do dia a dia do noticiário.
Uma
postulação assentada sobre uma fraude intelectual me incomoda muito
mais. A leitura que Marina faz das contribuições e malefícios do PSDB e
do PT à democracia brasileira é fantasiosa e atende apenas à mitologia
erigida a partir de sua lenda pessoal. Os brasileiros deveriam ter o
direito de escolher apenas um presidente da República. Marina quer nos
oferecer uma nova era. Cuidado, Platão! Se der certo, não tem como não
dar errado.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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