BLO0G ORLANDO TAMBOSI
Apesar de o conceito ‘imagem do que me aconteceu’ não ser simples de entender, a tecnologia tem dado ao processo interesse estético: nunca como agora uma omelete teve tanto apelo. Miguel Tamen para o Observador:
Os
historiadores ocupam-se do passado, e das coisas como realmente
aconteceram. Naturalmente discordam entre si sobre o que aconteceu
realmente. Mas estão todos de acordo sobre duas coisas: que aquilo de
que falam aconteceu, e de que já aconteceu, isto é, de que já acabou de
acontecer. Para ganhar prática fazem muitas coisas diferentes, que vão
desde aprender a ler documentos antigos até ir a jantares organizados
por historiadores mais velhos. São, por assim dizer, historiadores
deliberados; embora possam enganar-se sobre aquilo que dizem, não é por
acaso que o dizem.
O
público também tem vindo a desenvolver um certo interesse por história;
interessa-lhes em primeiro lugar a sua própria história, que é aquela
em que cada um encontra mais motivos de interesse. Aos nossos próprios
olhos tendemos a passar o teste de Júlio César, e podemos sem remorsos
adquirir a posição de objecto das nossas explicações. Júlio César falava
de si na terceira pessoa do singular, mas o truque parece hoje escusado
à maioria. Uma anedota, uma opinião, um encontro fortuito, e, como
dizia o poeta, posteridade és minha.
Seria
no entanto um erro pensar que este tipo de auto-história, ao contrário
da dos historiadores, é deliberado; na maior parte dos casos é acidental
e até fisiológico. Contar pequenas histórias, partilhar pensamentos,
capturar imagens e ter opiniões sobre nós próprios e aqueles com que
tivemos a pouca sorte de nos encontrar no arco dos nossos dias é um
reflexo tão incorrigível como ficar com pele de galinha, ou admoestar
crianças nos parques.
É
errado pensar que os historiadores acidentais se limitam à introspecção
para exercer o seu múnus. Pelo contrário, a geração por meios
tecnológicos de opiniões breves, pensamentos partilhados, e imagens
capturadas parece ser uma parte importante das suas actividades. Um dos
meios que os historiadores acidentais mais usam é justamente a captura
de imagens daquilo que lhes vai acontecendo. Apesar de o conceito
‘imagem do que me aconteceu’ não ser simples de entender, a tecnologia
tem dado ao processo interesse estético: nunca como agora uma omelete
teve tanto apelo, uma hiena foi tão mansa, ou um pôr-do-sol esteve tão
bem iluminado. É assim possível dispor de excelentes retratos do que nos
acabou de acontecer.
Tendo
vantagens inegáveis, as acções dos historiadores acidentais têm também
dois problemas, aliás relacionados: o primeiro é o de que passar tanto
tempo ocupado a registar o que nos aconteceu pode dificultar que nos
aconteçam outras coisas que possa valer a pena registar. O segundo,
menos cómico, é o de que os historiadores acidentais, ao ocupar-se do
seu passado com afinco, podem estar sem saber a antecipar a sua vida
futura. Essa futura vida consistirá na preocupação constante com a
história da sua vida: mesmo antes de lhes acontecer o que quer que seja
já lhe terão tirado a fotografia; antes de começar a almoçar, já terão
lavado toda a loiça.
Postado há 6 days ago por Orlando Tambosi
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