Uma
reforma tributária com justiça fiscal é capaz de reduzir profundamente a
desigualdade social. Não há justificativa técnica para que o direito à
alimentação não seja plenamente atendido.
Não
há justificativa técnica para que o direito à alimentação não seja
plenamente atendido. Se as pesquisas estão certas e se uma cesta básica é
suficiente para prover a alimentação de uma família por um mês, a
erradicação total da fome no Brasil teria um investimento de
aproximadamente R$ 60 bilhões ao ano, que corresponderia a uma cesta
básica (R$ 731,00) por mês para sete milhões de famílias que se
encontram em situação de fome no Brasil.
Em 2021, as empresas multinacionais que atuam no Brasil remeteram para o exterior mais de R$ 140 bilhões
de lucros istentosde Imposto de Renda. Em 2020, foram distribuídos para
pessoas físicas no Brasil mais de R$ 500 bilhões de lucros e
dividendos, também isentos do Imposto de Renda. Com a revogação apenas
destas duas isenções concedidas às rendas do capital, já seria possível
arrecadar mais de R$ 120 bilhões, o dobro do que seria necessário para
acabar com a fome. Essa proposta não representa nenhuma revolução. Todos
os países do mundo cobram imposto sobre lucros e dividendos
distribuídos. Portanto, se vamos fazer uma reforma tributária séria,
precisamos tratar de reduzir os nossos déficits sociais, começando pela
erradicação da fome.
Nesses
tempos em que a Reforma Tributária tem ocupado, diariamente, as
manchetes dos jornais, é preciso colocar um pouco de luz sobre os nossos
déficits sociais. O que está faltando para que os direitos sociais
definidos na Constituição Federal, há quase 35 anos, possam ser
efetivamente atendidos? Mais do que uma questão técnica, é do
financiamento público que estamos tratando. Se vamos reformar o sistema
tributário, as dívidas sociais, que se acumulam ao longo do tempo,
precisam ser consideradas.
O
Artigo 6º da Constituição Federal de 1988 não poderia ser mais
explícito ao determinar que, ao lado da saúde, da educação, da
previdência e da segurança, a alimentação constitui também um direito
social, ou seja, o acesso à alimentação precisa ser garantido pelo
Estado a todos e de forma indiscriminada. Vou me ater, neste artigo,
apenas a este direito social, ainda não atendido, mas que deveria estar
no campo das preocupações daqueles que estão pensando em uma nova
estrutura tributária para o país.
O
preâmbulo da Constituição estabelece que o nosso Estado Democrático se
destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança e o bem-estar, dentre outras coisas. A dignidade
humana é um dos fundamentos da nossa sociedade, que tem como objetivo,
entre outros, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e não
há como desconectar esses pressupostos à necessidade de garantir a
todos o acesso à alimentação.
Segundo o
Relatório
sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no
Brasil (Rede Penssan) 15,5% da população, que corresponde a 33,1 milhões
de pessoas, passavam fome em 2022. São pelo menos sete milhões de
famílias vivendo nesta situação dramática. A fome significa exatamente a
negação do direito à alimentação. Ao atribuir à alimentação a condição
de um direito social, os constituintes relativizaram a sua condição de
mercadoria, ou seja, ninguém pode ser privado da alimentação, ainda que
não tenha condições financeiras para adquiri-la no mercado.
Assim
como a todos deve ser assegurado o acesso à saúde e à educação, também
deve ser assegurado o acesso à alimentação, e essa é a forma mais direta
de erradicar a fome, de garantir o direito à vida, direito fundamental
constante do Artigo 5º da Constituição e de observar o fundamento da
dignidade da pessoa humana (Artigo 4º da CF/1988).
A
universalidade dos direitos impõe ao Estado e à sociedade a obrigação
de prover os meios necessários para sua implementação. Assim é com a
saúde pública que deve estar disponível, tenham ou não, os seus
usuários, condições financeiras. Diversas decisões judiciais têm
confirmado essa condição da saúde como um direito social ao determinar
obrigações ao SUS de financiar o acesso a medicamentos ou tratamentos
específicos, muitas vezes, extremamente onerosos aos cofres públicos.
Também o acesso à justiça é um direito que assiste a todos, independente
de quanto isso represente em termos de gastos para o Estado.
O
que é direito não é mercadoria, embora, para alguns, tais coisas possam
ser obtidas no mercado, como a educação, a saúde, a segurança ou a
previdência, por exemplo. No entanto, para todos os que necessitarem, o
direito precisa ser garantido, mesmo que a pessoa não tenha condições de
pagar. Por que, então, a alimentação básica ainda não está disponível a
todos? Por que há tanta gente que ainda passa fome no Brasil? Não é por
falta de alimentos, evidentemente, pois somos um dos maiores
exportadores de grãos do planeta.
Obviamente
que nem todos os direitos previstos no Artigo 6º da Constituição já
estão sendo garantidos plenamente ou de acordo com as necessidades ou
expectativas da população, mas alguns deles, no entanto, são
recorrentemente ignorados como direitos. É o caso da alimentação, do
trabalho, da moradia, do transporte e do lazer, por exemplo.
Por
outro lado, o direito à obtenção de renda pelo trabalho não substitui
os demais direitos e não é possível imaginar que se pudesse negar acesso
à saúde, à educação, à segurança àqueles que possuíssem renda. Por
outro lado, não pode nos passar despercebido que o pleno atendimento dos
direitos sociais pode significar uma elevação no valor dos salários, já
que os trabalhadores com suas necessidades essenciais atendidas podem
não se submeter a qualquer condição de emprego. Em sentido oposto,
necessidades não atendidas pelo Estado aumentam a disponibilidade para o
trabalho sob quaisquer condições, o que implicaria a redução geral das
remunerações. Essa constatação nos ajuda a entender por que há tantas
resistências para o avanço das políticas de ampliação e de garantia dos
direitos sociais.
O
acesso à alimentação necessária à sobrevivência não deve ser tratado
como uma contrapartida da renda do trabalho, assim como o acesso à saúde
pública não é. Portanto, o direito ao salário para os que trabalham ou à
renda básica para os que estão em situação de vulnerabilidade não
substitui o direito à alimentação, assim como não substitui o direito à
educação e à saúde. Imaginar que se possa considerar atendido o direito à
alimentação pela garantia de renda apenas reforça a tese de
substituição dos serviços de saúde e de educação por vouchers, que os liberais tanto defendem.
- Dão Real Pereira dos Santos
Auditor fiscal, presidente do Instituto Justiça Fiscal, coordenador da campanha Tributar os Super-Ricos
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