BLOG ORLANDO TAMBOSI
A falta de confiança política tem-se feito acompanhar pela perda de confiança num modelo de organização que deixou de funcionar adequadamente pelo que a revolta antissistema não nos deve surpreender. Patrícia Fernandes para o Observador:
Em 2011, a revista Time escolheu como pessoa do ano a figura do manifestante.
Foi um ano de grande exultação popular nas ruas: depois dos protestos
que ficariam conhecidos como Primavera Árabe, as manifestações
espalharam-se pelos países ocidentais, desde a geração à rasca entre nós
aos indignados espanhóis, até culminar no movimento Occupy. Esse ano,
que Slavoj Žižek
viria a consagrar como o ano em que sonhamos perigosamente,
sedimentaria o argumento de que um regime verdadeiramente democrático
está mais próximo dos movimentos que ocupavam as ruas do que da
democracia formal representativa que estaria resgatada por interesses
das elites económicas.
O
argumento tem forte ressonância académica, mas, como muitas vezes
acontece, acaba por originar uma contradição insuperável: é que as
mesmas pessoas que asseveram a primazia da rua em certos protestos são
as mesmas que invalidam com igual vigor os protestos com os quais não
concordam. Recordemos como, poucos anos volvidos, em Portugal se
criticaram as manifestações em defesa das escolas com contrato de
associação ou, em França, os coletes amarelos. Esta atitude de porteiro
(gatekeeping) – que consiste em reclamar o direito de dizer quem é de
esquerda, o que é democrático, que ideias são legítimas, etc. – visa
silenciar vozes contrárias e deve, por isso, ser denunciada, mas escapa à
pergunta que pretendo aqui explorar: em regimes democráticos liberais,
os protestos de rua são legítimos ou põem em causa a democracia?
O que é a democracia?
Para
responder àquela questão, temos de começar por esclarecer o que
queremos dizer com a palavra democracia (um conceito essencialmente
contestado, como diz W.B. Gallie).
E podemos fazê-lo a partir de uma perspetiva histórica: a democracia
dos antigos seria uma forma de governo assente na participação direta
dos cidadãos; a democracia dos modernos (a nossa democracia) seria uma
democracia indireta ou representativa, na medida em que o exercício do
poder cabe a representantes, escolhidos em eleições.
É
o espírito da antiguidade que alguns convocam para afirmar que uma
verdadeira democracia tem de significar a participação direta dos
cidadãos (nomeadamente, em assembleias populares): só assim o regime se
torna legítimo. E de acordo com esta perspetiva, a democracia
representativa surgiria como uma versão defeituosa da democracia
verdadeira.
Esta posição desvaloriza, no entanto, um aspeto importante, como chamam a atenção Bernard Manin e Nadia Urbinati:
ao contrário de ser um sistema defeituoso, a democracia representativa
foi desenhada precisamente para superar as fragilidades da democracia
dos antigos. O que os filósofos dos séculos XVIII e XIX, profundos
conhecedores da antiguidade, tentaram fazer foi superar as dificuldades
que identificavam nas democracias gregas e nas repúblicas populares
romanas.
Que correções foram então promovidas?
O
elemento central da democracia representativa assenta num princípio
fundamental de mediação: todas as estruturas, mecanismos e instituições
são pensados para garantir um processo de mediação que permita diluir a
possibilidade de conflito e violência. Em primeiro lugar, a existência
de representantes permitiria que, por um lado, as decisões políticas
sejam tomadas não em função do interesse próprio, mas com
imparcialidade; e, por outro, que um princípio de racionalidade
prevaleça sobre uma lógica de emoções e sentimentos – para tal, os
representantes devem ter alguma margem de distanciamento e liberdade na
sua atuação. Em segundo lugar, a distribuição de funções por diferentes
instituições eliminaria a possibilidade de concentração do poder. Em
terceiro lugar, os partidos garantiriam a apresentação de medidas
amadurecidas e refletidas: como Ricardo Araújo Pereira costuma dizer, a
política não pode estar ao nível das coisas que dizemos ao balcão de um
café; e os partidos serviriam, então, para transformar preocupações
sociais em medidas concretas, razoáveis e exequíveis. A partir daí, um
regime democrático liberal permitiria o necessário processo de
discussão, negociação e compromisso – que só é possível se formos
capazes de nos afastar de interesses próprios e reconhecermos que as
sociedades vivem de visões e interesses plurais, mas que, apesar disso,
tem de ser possível chegar a um compromisso.
Significa isto, como disse José Miguel Júdice
recentemente, que “a população ignara no meio da rua deve ser impedida
de destruir as decisões dos órgãos legitimados pelo voto”?
Na
verdade, a maioria dos autores considera que a democracia
representativa deve garantir que os representados possam expressar as
suas queixas e reivindicações no espaço público e pressionar os
representantes ou governantes. Embora privilegie o momento eleitoral, a
democracia liberal não se limita a esse momento e deve compreender a
possibilidade de manifestações, protestos e tentativas de condicionar a
ação dos que se encontram em exercício. (Pensemos nos protestos de ontem
junto ao Palácio de Cristal.)
Mas que limites haverá para essas manifestações?
A crise da democracia representativa
As
palavras de José Miguel Júdice foram proferidas a propósito dos
tumultos em França contra a decisão de alterar a idade de reforma.
Júdice defendeu que se tratava de uma “violenta recusa da aceitação de
uma decisão legal e legítima” e que, portanto, era uma tentativa de
“subverter o estado de direito”. Equiparou ainda estes protestos ao que
aconteceu nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio em 2021, e no
Brasil, com a invasão ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao
Supremo Tribunal Federal no início deste ano. Tratar-se-ia de um
assalto à democracia, pelo que se exige uma condenação clara deste tipo
de manifestações.
A
violência dos protestos assume aqui relevância, mas devemos ter em
conta as tradições nacionais específicas e a França é um país que conta
com uma longa tradição de protestos de rua violentos, como recordam Jaime Nogueira Pinto e Paulo Tunhas.
Ainda assim, se considerarmos o número incrível de pessoas que tem
protestado ao longo das últimas semanas, é possível afirmar que aquela
violência constitui um comportamento minoritário. Por outro lado,
tumultos violentos podem ser interpretados, na linha de Maquiavel,
como importantes para a estabilidade do próprio sistema: o autor
renascentista considerava que foi a dinâmica tumultuosa entre a plebe e
os patrícios a permitir a estabilidade da república romana.
Mas
a intuição de Júdice parece acertada quando afirma que os nossos tempos
se assemelham aos idos de Março: há, de facto, uma deterioração do
sistema representativo tal como o apresentei teoricamente, e que nos faz
recordar os finais da república. Na verdade, as características que
consolidariam a democracia dos modernos como uma melhoria face à
democracia dos antigos parecem ter entrado em processo de obsolescência –
em particular no que diz respeito ao mecanismo de representação, com um
fosso crescente entre representantes e representados, entre o mundo
político e o mundo real. E o problema desse fosso é que os
representantes deixam de representar os eleitores para passarem a
representar-se a si mesmos e aos seus interesses (às vezes pessoais,
muitas vezes partidários). Esse afastamento provoca um sentimento
generalizado de desconfiança face ao sistema político e tem ampliado a
radicalização dos protestos antissistema.
Ora,
essa falta de confiança política tem-se feito acompanhar pela perda de
confiança num modelo de organização social que deixou de funcionar
adequadamente – desde os serviços públicos aos apoios sociais –, pelo
que a revolta antissistema não nos deve surpreender: sabemos que a
legitimidade dos regimes políticos está diretamente dependente da sua
utilidade. Na verdade, essa revolta e aqueles protestos devem ser antes
entendidos como sinais de que o sistema está a falhar (e, nessa medida,
são eminentemente democráticos). Mas se confundirmos os sintomas com a
doença (e isso é particularmente evidente em Portugal), não
conseguiremos compreender se ainda é possível salvar a democracia
liberal ou se estamos realmente condenados a olhar os nossos tempos como
os idos de Março.
Postado há 6 days ago por Orlando Tambosi
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