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A preocupação de Berlin com a liberdade é a mesma de Constant: a de apontar a fragilidade do indivíduo frente ao poder massivo, esteja ele na mão de um único homem, de um grupo de indivíduos ou da maioria. Ensaio de Celina Alcântara Brod:
Apontar
o óbvio e delatar absurdos tem sido a exaustiva tarefa do bom senso. E a
filosofia, nessas horas, pode ajudar a iluminar os cantos escuros que
permitem que o óbvio se esconda, o absurdo seja defendido e a barbárie
relativizada. É certamente possível continuar a rotina com panos
quentes, mas teimar pela sensatez é algo inquietante. Além disso, se a
insistência no bom senso servir a uma única pessoa, já terá sido uma
vitória.
Nosso
cenário político, os eventos eleitorais e as mídias sociais nos colocam
diante de uma disputa tribal, na qual populismo e nacionalismo inflamam
paixões.
Há
esquadrões de pessoas que acreditam estar lutando para o bem da
humanidade. Não se trata mais de política, de contrastar opiniões, mas
sim da luz contra a escuridão. Na ânsia de vencer a cruzada
“espiritual”, algumas simples e indispensáveis formas de investigação e
análise são colocadas de lado. Compreensível que seja assim. Afinal,
ponderar e revisar nossas crenças diariamente a cada fato novo que surge
requer uma dose de ceticismo, um desdém pela esperança e uma
individualidade torrencial. É tremendamente mais fácil repetir algum
canto coletivo e slogans que ofereçam conclusões logo pela manhã. É
arrogante afirmar que os filósofos têm o dever intelectual de mudar o
mundo, na verdade, o flerte entre a filosofia e a política às vezes pode
levar a resultados patológicos. Porém, uma das tarefas seguras do
filósofo é esclarecer a intencionalidade de conceitos e denunciar suas
perversões.
Isaiah
Berlin (1909-1997) foi um destes pensadores que iluminou cantos escuros
com sua vasta e profunda análise das ideias políticas. Através de
conferências transmitidas pela rádio da BBC, o filósofo britânico de
origem russa judaica, desceu da torre de marfim e tornou acessível ao
público as questões mais espinhosas da filosofia. Tudo isto sem jamais
perder a profundidade e o comprometimento. Talvez seu pensamento nos
ajude a entender como foi possível chegar até aqui: como a
individualidade pode se dissolver em tribos e paradoxalmente ainda
reivindicar a liberdade para todos? Como podemos explicar as agressões e
discriminações que são relativizadas em nome de um “bem” maior? E como o
conceito de liberdade política pode isolar a intolerância?
A
palavra liberdade foi um dos centros gravitacionais da odisseia
filosófica de Berlin. Dotado de uma eloquência e erudição espantosa, o
filósofo dissecou as inúmeras formas de liberdade e as intenções
alinhavadas por de trás delas. “Liberdade é um termo cujo significado é
tão poroso que há poucas interpretações a que é capaz de resistir”,
escreve o filósofo. A profundidade do seu estudo nos ensina que a
liberdade é um termo que exige um olhar menos ingênuo e que o poder das
ideias não deve ser subestimado.
A
escrita política de Berlin confronta certa tradição filosófica, um
embate intelectual que surgia como efeito do mundo pós-guerra. O cenário
melancólico, ressaca de um tempo totalitário e assombroso, demandava
que certas ideias do século XIX fossem reexaminadas de perto. Havia algo
que não estava sendo dito. Diferenças no trato da liberdade que
escondiam em suas premissas possíveis brotos de tirania e ideais
políticos que abrigavam certo substrato teológico. Ao avaliar as ideias
iluministas, Berlin aponta um legado de pensadores que haviam esvaziado a
liberdade de seu sentido mais bruto; o de não coerção. Em sua obra
Freedom and its Betrayal encontramos as perspectivas de Berlin a
respeito da filosofia de Hélvetius, Rousseau, Fichte, Hegel, Saint-Simon
e Maistre.
O
sentido da liberdade moderna foi defendido pelo francês Benjamin
Constant em sua famosa conferência em 1819. Berlin, em uma palestra
proferida em Oxford em 1958, “Two concepts of Liberty”, reafirma e
aprimora o irretocável registro de Constant. Além de retomar a
relevância da autonomia privada e individualidade, Berlin depura a
diferença entre duas concepções de homem livre, o que ele chamaria de
liberdade negativa e positiva. Termos aparentemente semelhantes, porém
suas implicações seriam largamente opostas. Segundo Berlin, são essas
duas concepções distintas de liberdade que colidem no campo político e
são elas que constroem molduras e “atitudes profundamente divergentes e
irreconciliáveis quanto às finalidades da vida”. Conhecer estas
diferenças pode nos auxiliar a compreender nossa situação e a cegueira
moral em que nos encontramos.
A
preocupação de Berlin com a liberdade é a mesma de Constant: a de
apontar a fragilidade do indivíduo frente ao poder massivo, esteja ele
na mão de um único homem, de um grupo de indivíduos ou da maioria. Por
que, afinal, alguém deveria obedecer a qualquer outra pessoa? Para
Berlin esta pergunta resume, em certa medida, a questão filosófica
fundamental da reflexão política. Ou seja, é a autoridade para mandar e a
submissão de obedecer que são os entraves da busca por uma justificação
para as relações de poder. Uma pergunta escandalosa para o século
XVIII. E é na resposta dos filósofos para esta questão inesgotável que
encontramos os sentidos de liberdade e a natureza de suas diferenças.
A
liberdade negativa, afirma Berlin, preocupa-se em garantir um espaço de
não intervenção, isto é, delimitar até onde o governo pode intervir na
vida dos indivíduos. Neste sentido, é livre aquele sujeito que molda sua
vida de acordo com seus desejos, expressa sua espontaneidade e não tem
sua vontade frustrada por alguma interferência ou coerção deliberada. É
sobre o espaço da escolha, da manifestação da excentricidade, da
linguagem livre e dos fins individuais que filósofos como Locke, Hume,
Mill, Constant e Tocqueville buscavam assegurar. O pilar que sustentava a
defesa da ausência de coerção, o respeito pela liberdade individual e o
exercício da tolerância, era o reconhecimento de que conformidade e
uniformidade são simplesmente inatingíveis. Estes pensadores entendiam
que o homem é singular em sua consciência, e é esta singularidade que
deveria ser protegida e não esmagada. Se Constant defendeu que o homem
moderno não deveria mais ser submisso aos valores da comunidade, Berlin
reforçou que a liberdade política era a preservação de uma área no qual a
personalidade humana pudesse se expressar livremente. Os desacordos
entre os filósofos desta tradição, neste caso, seriam sobre a amplitude
desta área, ou seja, barganhava-se a fronteira.
Berlin
reconhece que pouco adianta garantir liberdades políticas a um homem
despido de suas necessidades básicas. Afinal, que utilidade há na
liberdade para aqueles que não podem usufruí-la? Neste caso, “botas são
superiores as obras de Shakespeare” defende Berlin citando Dostoiévski.
Contudo, o que ele sublinha é o fato de ser este um problema de justiça
ou igualdade, e não de liberdade. Pois é a liberdade que se sacrifica em
nome de justiça e igualdade. Ajustes semânticos preciosos. Se o espaço
de consciência de cada homem deve ser inviolável, cada pequena violação
haveria de ser muito bem justificada.
No
conceito positivo de liberdade, os homens seriam livres quando
autogovernáveis e aptos a perseguirem seus fins. Em outras palavras,
quando são capazes de agirem livres da escravidão de seus desejos,
inclinações, prazeres imediatos ou motivos alheios. Isso significa que
suas decisões não dependem de fatores externos sejam eles quais forem.
Ser livre, em um sentido positivo, é agir por razões próprias e ser
direcionado por elas. A liberdade positiva estaria associada a uma ideia
de auto-realização e auto-aperfeiçoamento, identificada com a razão e
com uma “natureza superior”.
Neste
sentido, a liberdade positiva vincula-se a uma noção de “eu” mais
sublime que se caracteriza com a capacidade universal da razão. Um “eu”
ideal que se opõe ao “eu” dos impulsos irracionais, dos desejos e
circunstâncias. Berlin aponta que estas duas dimensões teriam sido
dispostas em um hiato ainda maior, em que o “eu” real, racional e
autônomo é mais amplo que a noção de indivíduo, podendo ser expresso por
um “eu social”. Este, por sua vez, revelado através dos interesses
comuns de um grupo, da nação, da igreja, do Estado ou da vontade geral.
Na
perspectiva de Berlin, o perigo reside neste detalhe, pois tal truque
semântico tornaria assim justificável coagir alguns homens para
elevá-los a um nível superior de liberdade. Uma coação em nome de um
ideal que eles reconheceriam se fossem mais esclarecidos. Berlin alerta
que uma vez tomada esta visão, os verdadeiros desejos dos indivíduos são
ignorados para que se possa então intimida-los em nome de sua
verdadeira natureza racional e livre. Assim, corpos políticos podem ser
magicamente acomodados como corpos geométricos, basta que sejam guiados
por alguma entidade ou líder que represente tal racionalidade. A ideia
de individualidade é então dissolvida pelo pertencimento a algum
coletivo que almeja tal libertação. Termos orgânicos como, povo, nação,
raça ou vontade geral representariam tal ideal harmônico em que os fins
são reconciliáveis e entregues por algum representante.
Berlin
enfatiza que esta seria a distorção de uma liberdade individual
interna, genuína e apolítica de autopercepção. Um deslocamento e
usurpação da palavra liberdade para um autoritarismo subserviente. Esta
concepção tornaria possível a opressão tribal de uns sobre os outros, em
nome de alguma libertação metafórica e harmonia prometida. Nesse
sentido, confundir a liberdade positiva com liberdade política, isto é, o
sentido de não coerção, seria uma analogia falaciosa e um argumento
usado para massificação dos homens. As pessoas, quando dissolvidas em
uma direção grupal, justificam os episódios agressivos, as atitudes
controversas e os fatos alarmantes em nome da convicção em seus
representantes. Com isso, deixam de analisá-los com distanciamento, se
eximem do fardo do julgamento e relativizam seus atos incongruentes. As
questões pragmáticas e as propostas para uma retomada minimamente
saudável do país é o que menos importa, são tomadas como meros detalhes.
Ironicamente,
os extremos têm um ponto em comum: a crença de que cabe à política
solucionar o abismo entre o que somos e o que deveríamos ser. Berlin
reforça que a história torna claro que “esta questão está longe de ser
meramente acadêmica”. Nosso panorama político contemporâneo, sem dúvida,
endossa a mesma constatação. O objetivo de Berlin é denunciar as
perversões dos sentidos de liberdade, e não o favorecimento de uma em
detrimento da outra. Suas reflexões, acima de tudo, ensinam que para
conservar o pluralismo das sociedades democráticas é necessário reforçar
o valor ético de uma noção política de homem livre, ou seja, uma
liberdade em que os fins não justifiquem os meios.
Postado há 6 days ago por Orlando Tambosi
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