BLOG ORLANDO TAMBOSI
Ao contrário do que sugerem os passadores de pano, não há ambiguidades nas posições de Lula sobre a guerra: elas são muito claras - e são imorais. Jerônimo Teixeira para a Crusoé:
Lula bagunçou minha semana.
Eu
já tinha um artigo pronto para este número de Crusoé, mas o presidente
puxou meu tapete. Ou, na verdade, mandou seu ministro da Fazenda puxar
meu tapete.
Para
ser honesto, admito que o texto estava pronto só na minha cabeça:
escrevo sempre no último minuto, para desespero dos meus editores. O
mote do artigo seria a taxação dos sites estrangeiros que vendem
quinquilharia barata. Mote distante e indireto: eu passaria ao largo das
questões alfandegárias para me concentrar em uma única frase dita por
Fernando Haddad sobre sua medida impopular. Puxaria daí um fio
insuspeito que liga essa fala a uma declaração anterior de Haddad, de
quando ele ocupava a pasta da Educação no governo Dilma Rousseff: “A
diferença entre Hitler e Stalin é que Stalin lia os livros antes de
fuzilar os inimigos“. O artigo lembraria Mandelstam, que morreu no Gulag
por causa de um poema, e contaria ainda do dia em que Pasternak atendeu
o telefone e tomou um susto porque do outro lado da linha estava
Stalin, querendo conversar justamente sobre Mandelstam. O texto então
retornaria ao ministro da Fazenda que viajou até a China para dizer que
nunca fez compras na Shein. Já a caminho do fim, eu ainda arriscaria
dizer qualquer coisa sobre a tradição bacharelesca brasileira que
continua viva cinco séculos depois daquele português que, segundo Oswald
de Andrade, desembarcou no Brasil “citando Virgílio para tupiniquins“.
Esse
apanhado não faz jus ao ensaio que eu tinha em mente. Dá a impressão de
que seria um texto pedante e desconexo, um acúmulo vaidoso de citações.
Mas na minha imaginação, que não é rica mas é generosa, eu visualizo
uma peça de prosa sólida, do mais puro cristal flaubertiano. Já tinha
até um encerramento de impacto: “Só um filisteu se orgulha de comprar um
livro na Amazon todo o dia”.
Essa
obra-prima inacabada – aliás, sequer começada – perdeu o sentido quando
Haddad suspendeu a taxação de pequenas compras na Schein e na Shopee,
pela mesma razão que o levou a postergar, no início do ano, o reajuste
dos combustíveis: Lula não quer ficar mal na foto com os pobres em nome
dos quais imagina falar.
O
presidente também se imagina um porta-voz da Paz Mundial, essa
abstração musicada por John Lennon. Eis aí o tema que me sobra – o tema
que se impôs durante a semana que passou: as declarações de Lula, em sua
turnê por China e Emirados Árabes, sobre a Guerra da Ucrânia.
A
turma que se dedica à contenção de desastres verbais do presidente quer
nos convencer de que também esse é um assunto superado. Ora, não ficou
tudo esclarecido com o discurso protocolar que Lula leu na terça-feira
18, na recepção ao presidente da Romênia, Klaus Iohannis? “Meu governo
condena a violação da integridade territorial da Ucrânia”, afirmou o
petista, em consonância com o voto brasileiro contrário à Rússia na ONU,
em fevereiro.
Ocorre
que a Rússia não terá se abalado com essa declaração tíbia, que sequer
nomeia o responsável pela tal violação. E o voto brasileiro na ONU se
esvazia de força simbólica quando, menos de um mês depois, nosso
presidente reafirma, em entrevista concedida na China, que país violador
e país violado são ambos responsáveis pela guerra em curso desde
fevereiro do ano passado.
Dias
depois do retorno de Lula, o chanceler russo, Sergey Lavrov,
desembarcou em Brasília – bem à vontade, como se viu na foto – e saiu de
um encontro com o presidente anunciando que Brasil e Rússia têm uma
“visão única” sobre a guerra. Por contraste, Iohannis, segundo informa a
Folha de S. Paulo, respondeu à conversa mole de Lula com um discurso no
qual disse o óbvio: a Rússia desrespeitou o direito internacional ao
agredir a Ucrânia e é a única responsável pela guerra. A EBC transmitiu o
discurso de Lula, mas não a fala do presidente romeno.
Críticos
demasiado suaves do governo recomendam que Lula contenha seus
improvisos. O barulho em torno de declarações sobre a responsabilidade
ucraniana pela invasão russa se originaria apenas da espontaneidade
presidencial, que passou uma imagem errada da posição brasileira sobre o
conflito. Mas isso é falso. A posição do governo Lula sobre a guerra da
Ucrânia — não muito distinta, aliás, da posição do governo Bolsonaro —
não comporta ambiguidade ou contradição. O discurso da terça-feira não
representou qualquer correção de curso nessa linha estupidamente reta.
Lula e seus devotos até admitem que a Ucrânia teve a “integridade
territorial” violada, mas acreditam que isso se deu só porque o país
governado por Volodymyr Zelensky se comportou mal, flertando com Otan e
União Europeia. A Rússia sentiu-se ameaçada! Vladimir Putin não teve
escolha: partiu para a agressão defensiva.
Lula
espera resolver o conflito em uma mesa de discussões, reunindo países
“neutros” para fazer o meio de campo entre Putin e Zelensky. Em texto
publicado no dia em que o presidente viajava para a China, a revista The
Economist qualificou essa ideia como “ingênua”. Concordo, mas
acrescento: em certas circunstâncias, a ingenuidade é imoral.
A
disposição ingênua de arbitrar negociações de paz foi reiterada por
Lula no discurso da terça-feira. Ele se declarou preocupado com as
“consequências globais” do conflito, que põem em risco a “segurança
alimentar e energética” do mundo, em especial dos países pobres. Estaria
tudo correto, se o discurso não fugisse covardemente à questão central
do conflito. Lula fala das vítimas indiretas da guerra, as nações que
dependem dos grãos produzidos pela Ucrânia, mas se cala sobre a vítima
primeira e principal: o povo ucraniano. Nenhuma palavra sobre hospitais e
prédios bombardeados, sobre centros urbanos em escombros, sobre
populações deslocadas, sobre civis assassinados em cidades como Bucha e
Irpin.
O
Brasil voltou, diz a propaganda do governo. O mundo volta a nos
respeitar. Tomara que não. Será miserável um mundo que respeite Lula
como embaixador da paz.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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