BLOG ORLANDO TAMBOSI
A humildade geralmente não é encontrada entre aqueles que tentam construir o céu na terra ou que querem salvar o mundo através da tecnocracia. Samuel Gregg para o Observador:
Há
meio século, um economista largamente esquecido recebeu a notícia
inesperada de que tinha sido laureado com o Prémio Sveriges Riksbank em
Ciências Económicas em memória de Alfred Nobel. Friedrich A. Hayek ficou
igualmente surpreso ao descobrir que partilhava o sexto Prémio Nobel de
Economia com Gunnar Myrdal. As opiniões decididamente social-democratas
do economista sueco não poderiam estar mais afastadas da perspectiva
liberal clássica de Hayek.
Houve, no entanto, um ponto em comum entre estes dois improváveis co-galardoados. Tal como a Real Academia Sueca das Ciências observou no seu comunicado de imprensa
anunciando os vencedores do Nobel de Economia de 1974, uma das razões
para ambos os homens terem recebido o Prémio foi “a sua análise
penetrante da interdependência dos fenómenos económicos, sociais e
institucionais”. Myrdal, por exemplo, escreveu sobre as relações raciais
na América de um ponto de vista interdisciplinar. O seu trabalho nesta
área foi citado no julgamento Brown v. Board of Education do Supremo Tribunal dos EUA.
Como ilustram Bruce Caldwell e Hansjoerg Klausinger em Hayek: A
Life, 1899–1950, Hayek fez a sua própria viragem extra-económica no
final da década de 1930, quando o economista austríaco procurava
compreender por que razão o mundo ansiava a salvação através de um maior
controlo estatal sobre a economia e a sociedade em geral. Este processo
acelerou quando Hayek ingressou no Comite de Pensamento Social da
Universidade de Chicago em 1950.
Um
tema comum que marcou o estudo de assuntos como psicologia, ciência
política e direito por Hayek foi a convicção de que as ciências sociais,
incluindo a economia, tinham tomado um rumo errado quando procuraram
seguir tão de perto quanto possível os métodos usados nas ciências
naturais. O que Hayek chamou de “cientismo” distorceu posteriormente a
economia, ao concentra-la apenas naquilo que é mensurável e observável.
Embora isso possa funcionar nas ciências físicas, Hayek sustentava que a
confiança excessiva nesta metodologia estava fadada a produzir
conclusões enganadoras quando aplicada ao tipo de interacções humanas e
de conhecimento que são o objecto da economia. Era um tema ao qual Hayek
regressaria continuamente, até porque tocava no cerne da natureza da
economia e do seu potencial para contribuir para o bem-estar humano.
“Velha” versus “Nova” Economia
Hayek
não foi o único economista a lamentar a viragem cientificista da
economia do pós-guerra, na sequência dos esforços dos discípulos de
Keynes para concentrar a disciplina em macroagregados quantificáveis
que, acreditavam muitos economistas nessa altura, poderiam
fornecer-lhes a informação de que os governos e os tecnocratas
precisavam para dirigir e gerir a economia. O colega liberal de Hayek,
Wilhelm Röpke, escreveu longamente sobre o mesmo assunto. No ensaio de
1952 “Keynes and the Revolution in Economics”,
Röpke observou que a “nova economia” incorporava uma lógica
completamente diferente daquela da “velha economia” (pré-keynesiana).
Foi, no entanto, Hayek quem explorou de forma mais sistemática as
origens filosóficas desta mudança assim como as suas consequências
políticas e económicas.
O mais famoso dos estudos de Hayek nesta área foi o seu artigo de 1945 na American Economic Review “The Use of Knowledge in Society”.
O seu alvo imediato era a tese de economistas de tendência esquerdista,
como o socialista polaco Oskar Lange, de que o planeamento económico
era compatível com o funcionamento do mecanismo de preços. Nesta medida,
o artigo de Hayek fazia parte do debate sobre o cálculo socialista que
vinha sendo discutido desde a década de 1920. O que tornou o artigo de
Hayek de 1945 distinto foi o facto de abordar algumas das questões
epistemológicas subjacentes que impulsionaram este debate: mais
notavelmente, a perene questão sobre o que a razão humana pode realmente
saber. Na opinião de Hayek, este foi o ponto decisivo que tornou o
planeamento económico um exercício geralmente ineficaz e potencialmente
perigoso.
“Hoje”,
afirmou Hayek em 1945, “é quase uma heresia sugerir que o conhecimento
científico não é a soma de todo o conhecimento”. No entanto, sublinhou,
existem outros tipos de informação, muitas das quais são específicas dos
indivíduos. Estes incluem “conhecimento das circunstâncias particulares
de tempo e lugar”. A posse de tais informações tácitas e, portanto, em
grande parte não mensuráveis, dá, observou Hayek, “praticamente a cada
indivíduo… alguma vantagem sobre todos os outros, na medida em que
possui informações únicas das quais pode ser feito um uso benéfico, mas
das quais o uso só pode ser feito se as decisões que delas dependem
forem deixadas ao indivíduo ou tomadas com sua cooperação activa.”
Este
estado de coisas também cria desafios significativos para o planeamento
económico estatal, na medida em que este simplesmente não consegue
acompanhar as mudanças incrementais nas, e trocas de, informações em
curso às quais os indivíduos reagem constantemente ao nível micro
daquilo que Hayek chama de “economia de conhecimento.” Nenhum planeador
pode conhecer o enorme número de factores de mudança (incluindo as
preferências em constante alteração de milhares de milhões de indivíduos
à medida que reagem a variações intermináveis de preços) que afectam
os preços de milhões de bens e serviços em qualquer momento no tempo. A
ênfase pós-keynesiana na recolha e acção sobre macroagregados de formas
limitadas de informação que se prestaram à medição, desencoraja
positivamente os governos e os tecnocratas desle logo a sequer pensarem
nestes incognoscíveis. Isto conduzirá inevitavelmente a erros políticos
significativos, até porque envolve, como escreveu Hayek, uma vontade de
“assumir afastado o problema e desconsiderar tudo o que é importante e
significativo no mundo real”.
Uma espécie de “vingança”
Nas
três décadas que se seguiram à publicação do ensaio de Hayek de 1945,
as economias ocidentais em geral desfrutaram de um crescimento económico
estável, de um reduzido desemprego e de uma inflação baixa. Contra
Hayek, parecia que os governos auxiliados por aqueles versados na nova
economia poderiam orientar com sucesso a vida económica para a
realização de fins predeterminados e muito precisos. A “velha economia”,
personificada por Hayek e alguns outros liberais, parecia morta.
A
confiança nestas propostas começou a enfraquecer no final da década de
1960, à medida que economias ocidentais, umas após as outras, começaram a
experimentar o que os implementadores da “nova economia” consideravam
um cenário improvável: elevado desemprego acompanhado por uma inflação
crescente. Estas circunstâncias e a atribuição do Prémio Nobel a Hayek
em 1974 proporcionaram uma atenção renovada à crítica do agora idoso
economista ao planeamento e às ideias económicas alternativas às quais
estava associado.
Ninguém
teria ficado surpreendido se Hayek tivesse escolhido usar a sua
palestra do Nobel para se debruçar sobre os problemas económicos
imediatos da década de 1970 ou se envolver numa retrospectiva do tipo
“eu avisei”. Hayek, no entanto, decidiu alargar as questões
epistemológicas abordadas no seu artigo de 1945 e noutros artigos – mais
notavelmente, o seu ensaio de três partes “O Cientismo e o Estudo da
Sociedade”, publicado na Economica em 1942, 1943 e 1944. Isto é o que faz da palestra de Hayek sobre o Prémio Nobel, “A Pretensão do Conhecimento”,
uma das suas mais importantes contribuições intelectuais e razão pela
qual é recompensadora uma leitura cuidada de Hayek, 50 anos depois de a
ter proferido em Estocolmo.
A arrogância custa caro
Hayek
começou a sua palestra na cerimónia do Nobel com a observação algo
polémica de que os economistas estavam a ser chamados a salvar o mundo
livre da “inflação acelerada” que, insistiu Hayek, resultou de políticas
que “a maioria dos economistas recomendou e até exortou os governos a
seguirem”. Na opinião de Hayek, isto era sintomático da medida em que os
economistas tinham “confundido tudo”.
No
centro desta crise económica, afirmou Hayek, estava “a atitude
‘científica’” que estava subjacente à economia do pós-guerra. Durante
três décadas, afirmou, os economistas insistiram que havia “uma
correlação positiva simples entre o emprego total e a dimensão da
procura agregada de bens e serviços”. Isto, acrescentou Hayek, levou “à
crença de que podemos garantir permanentemente o pleno emprego, mantendo
a despesa monetária total num nível apropriado”.
Para
Hayek, no entanto, o que importava era que subjacente a esta convicção
estava uma forte dependência de “dados quantitativos”. Mas, segundo
Hayek, a capacidade de tais dados para captar fenómenos tão complicados
como a inflação e o desemprego era “necessariamente limitada”. Existem,
reconheceu Hayek, um grande número de factos que não podemos medir e
sobre os quais, na verdade, temos apenas algumas informações muito
imprecisas e gerais. E porque os efeitos destes factos em qualquer caso
particular não podem ser confirmados por provas quantitativas, eles são
simplesmente ignorados por aqueles que juraram admitir apenas o que
consideram como provas científicas: prosseguem então alegremente na
ficção de que os factores que podem medir são os únicos que são
relevantes.
Dito
de outra forma: só porque não se pode medir algo, não significa que não
exista ou não seja importante. Decorre daqui, argumentou Hayek, que
calcular grandes agregados de um número limitado de coisas que se
prestam à medição, e depois tentar desenvolver teorias para explicar as
relações entre tais agregados, estava fadado a produzir explicações para
o aumento da inflação, por exemplo, insuficientemente atentas ao que
acontecia ao nível micro da economia.
Hayek
ilustra este ponto examinando o fenómeno de como os preços e salários
são formados numa economia de mercado. “Na determinação destes preços e
salários”, explicou Hayek, “entrarão os efeitos da informação específica
detida por cada um dos participantes no processo de mercado – uma soma
de factos que na sua totalidade não podem ser conhecidos pelo observador
científico nem por qualquer outro cérebro.” Consequentemente, os
economistas não podem saber, por mais sofisticado que seja o modelo
econométrico, “que estrutura específica de preços e salários a procura
igualaria a oferta em toda a parte”.
Isto
não significa que Hayek pensasse que usar a matemática na economia
fosse uma perda de tempo. Tais técnicas, notou ele, podem ajudar a
traçar padrões gerais. No entanto, não podem encapsular tudo o que
determina a formação dos preços porque nenhum modelo consegue captar
toda a informação necessária para moldar os preços.
Isto,
salientou Hayek, tinha sido bem compreendido pelos filósofos do direito
natural do século XVI, como os jesuítas Luis Molina e Juan de Lugo, que
estudaram na Universidade de Salamanca. Eles enfatizaram, comentou
Hayek, “que o que chamavam de pretium mathematicum, o preço matemático,
dependia de tantas circunstâncias particulares que nunca poderia ser
conhecido pelo homem, mas era conhecido apenas por Deus”.
Sem humildade, não há liberdade
É aí
que reside o significado normativo e político da palestra Nobel de
Hayek. No seu cerne estava um apelo aos economistas para evitarem a
húbris encorajada pelo cientismo. Não se tratava apenas de manter a
integridade da disciplina como ciência social. Era também uma questão de
ser realista relativamente aos poderes preditivos da economia: um
realismo que deveria desencorajar expectativas irrealistas por parte dos
governos e dos cidadãos sobre aquilo de que a economia, a política
económica e os economistas são capazes.
Calibrar
corretamente tais expectativas era crucial para Hayek por duas razões.
Em primeiro lugar, insistiu: “O conflito entre o que no seu estado de
espírito actual a sociedade espera que a ciência alcance para satisfazer
as esperanças populares, e o que está realmente ao seu alcance é um
assunto sério”. Esperanças exageradas levam os eleitores a imaginar que
os governos podem obter resultados económicos simplesmente puxando
várias alavancas intervencionistas, e os líderes políticos e tecnocratas
a comportarem-se como se pudessem fazê-lo. Esta é uma receita para a
decepção e, potencialmente, para perturbações profundas no sistema
político.
A
segunda razão para a preocupação de Hayek era, numa palavra,
civilizacional. Quando a economia e a política económica são infectadas
pelo vírus do cientismo, começamos a imaginar que podemos melhorar a
ordem social à vontade através do controlo de cima para baixo. Tal
“esforço fatal”, como Hayek o descreveu, alimentado pela recusa em
reconhecer “os limites insuperáveis do seu conhecimento”, pode tornar
alguém “não apenas um tirano sobre seus semelhantes, mas também pode
muito bem torná-lo o destruidor de uma civilização que nenhum cérebro
projetou, mas que cresceu a partir dos esforços livres de milhões de
indivíduos”.
Deste
ponto de vista, o significado da palestra de Hayek no Nobel foi além da
economia. Foi mesmo um apelo genérico a algo que parece perpetuamente
suspenso: a humildade intelectual e política. Para Hayek, o sucesso da
melhoria da sociedade através da economia ou de qualquer outra ciência
social baseava-se na aceitação de que existem áreas da vida humana sobre
as quais, disse ele à sua audiência de suecos em 1974, “não podemos
adquirir o conhecimento completo que tornaria o domínio dos
acontecimentos possível.”
Na
altura em que Hayek pronunciou estas palavras, as dúvidas sobre a
capacidade do planeamento estatal para dominar os assuntos económicos
estavam de novo a ficar na moda. Seis anos após a sua palestra, Ronald
Reagan e Margaret Thatcher estavam no poder e prometiam uma ruptura
decisiva com as políticas intervencionistas do pós-guerra.
Esse
mundo parece muito distante do de hoje. Grande parte da direita
juntou-se à esquerda na insistência de que o Estado pode e deve ser
usado para produzir resultados económicos muito específicos, através de
meios como bancos centrais activistas, proteccionismo, política
industrial e maior regulamentação. Até os controlos de preços estão a
ser cogitados em todo o espectro político.
A
dificuldade com tantas destas políticas é que elas negam a observação
de Hayek de que não somos deuses nem Deus e que, portanto, nem os
economistas nem os funcionários do Estado possuem as qualidades divinas
de que necessitariam para superar as sérias limitações criadas pelo
problema do conhecimento. Tais eram as convicções de Hayek sobre este
assunto que expressou dúvidas durante os seus comentários
no jantar do banquete Nobel sobre a prudência de criar o próprio prémio
Nobel de economia. Entre outras coisas, Hayek temia que isso conferisse
“a um indivíduo uma autoridade que em economia nenhum homem deveria
possuir”.
A
humildade geralmente não é encontrada entre aqueles que tentam
construir o céu na terra ou que querem salvar o mundo através da
tecnocracia. É, no entanto, algo que nos mantém em contacto com a
realidade da economia, da sociedade e de nós próprios. É isso que faz da
mensagem Nobel de Hayek sobre a nossa capacidade de conhecimento um
exercício tão poderoso de dizer a verdade para sempre.
Nota Editorial: Artigo publicado originalmente em Inglês em 24/Jan/2024 na Law & Liberty.
Samuel
Gregg é Doutorado em Filosofia Moral e Política Económica pela
universidade de Oxford e Mestre em Filosofia Política pela universidade
de Melbourne. É Distinguished Fellow em Política Económia e Senior
Research Faculty na American Institute for Economic Research. É membro
da Mont Pèlerin Society e do conselho académico de numerosas
instituições internacionais. Autor de 16 livros, escreve regularmente na
imprensa internacional e nas mais prestigiadas publicações académicas
europeias e americanas, sendo citado com frequência nos media.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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