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O previsível “padrão social polêmico” das propostas de redação do Enem possibilitou que as professoras adestrassem os alunos, municiando-os com uma série de argumentos prontos. Catarina Rochamonte para O Antagonista:
Em tempos de expansão da Inteligência Artificial
e da escrita robotizada, a boa escrita deveria reivindicar seu valor.
Escrever é uma arte. Como toda arte, pressupõe originalidade, potência
criadora, técnica, estilo. O escritor sabe que o seu texto é
imprevisível; nunca sai como ele planeja. Isso se dá porque o pensamento
não é estático, acabado, pronto, mas é algo que se faz e se refaz no
próprio ato de escrever.
O
bom texto também é singular, único, porque refrata para o papel ou para
a tela do computador algo do repertório do autor, sua experiência de
vida e suas leituras.
Penso
que não temos chances de competir com robôs que produzem textos, senão
refinando a escrita, colorindo-a com aquilo que somos e que adquirimos
com anos de leitura e de esforço nessa “profissão de fé” que, como diria
Olavo Bilac, exige “tanta perícia, tanta requer, que ofício tal…nem há
notícia de outro qualquer.”
“Livros e livros”
Isso me veio à mente após a leitura de uma matéria publicada recentemente no Estadão.
A matéria dá conta de uma jovem que tirou nota mil no Enem (Exame
Nacional do Ensino Médio). Ela não é “muito de ler”, nem gosta de
escrever, mas teve êxito no exame por aplicar fielmente um método de
“redação semi-pronta” no qual as professoras lhe ensinaram que “não
precisava ler livros e livros para fazer uma redação.”
De
fato, não se lê “livros e livros” apenas “para fazer uma redação”.
Lê-se “livros e livros” para ter acesso a diversas visões de mundo,
aprender a refletir, expandir a compreensão das coisas, adquirir
repertório, forjar um estilo.
Formar-se
culturalmente, porém, parece prescindível para o jovem quando se torna
óbvio que o Exame Nacional do Ensino Médio avalia tão somente a
capacidade que o aluno adquiriu de reproduzir, de uma maneira técnica e
formal, a visão ideológica esperada pela banca de corretores.
O método
Isso
fica claro não apenas nas declarações ingênuas da aluna nota mil, mas
nas falas das próprias professoras que vendem o exitoso método:
“Eles
já vão para a prova sabendo os argumentos que podem usar e lá escolhem
quais são os mais pertinentes para trabalhar com o tema proposto” […]
Não dá para prever qual será o tema da redação, mas por ele sempre
seguir um padrão – social, polêmico – a gente consegue observar causas
ou motivos de permanência similares. É a partir dessa lógica que os
alunos são capazes de argumentar sobre qualquer assunto e com
repertórios socioculturais”, explicam as mentoras.
Ou
seja, o previsível “padrão social polêmico” das propostas de redação do
Enem possibilitou que as professoras adestrassem os alunos,
municiando-os com uma série de argumentos prontos.
Para
o caso específico da proposta do último ENEM, “Desafios para o
enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela
mulher no Brasil”, a aluna nota mil — e agora garota propaganda do
método de redação prêt-à-porter — disse que escolheu como argumento “o
patriarcado como elemento estruturante para a desvalorização do serviço
realizado pelas mulheres”.
Com
esse “ótimo” argumento do patriarcado na manga, bastou manejar o
restante dos “repertórios socioculturais” que, justiça seja feita,
encontram-se mais na retórica de professores doutrinadores do que em
bons livros, que passam a ser dispensáveis.
A
estudante também balançou na sua cabeça o saco das citações decoradas e
retirou de lá essa do Claude Lévi-Strauss, que caiu como uma luva para a
proposta: “Só é possível compreender adequadamente as ações coletivas
por meio do entendimento dos eventos históricos.”
A intervenção aleatória precisou ser encaixada para dar ao texto aquele ar cult, que os pseudointelectuais adoram.
Mas
ainda faltava algo… um toque final, a cereja do bolo para garantir a
nota mil. Então, declarou triunfante a jovem, com a inocência de quem é
só o resultado sintomático do que se tornou nosso sistema educacional:
“Eu fiz essa ligação com a herança histórica machista que existe no
Brasil.”
Enquanto
o mundo corre para reavivar a criatividade e refinar a inteligência
humana diante do vertiginoso crescimento da inteligência artificial, o
Brasil vai no caminho inverso e opta por robotizar as mentes jovens,
mantendo-as no círculo retórico de uma ideologia caduca.
Postado há 3 days ago por Orlando Tambosi
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