A verdade a ser buscada na política é de dois tipos: a verdade factual e a verdade político-moral. Catarina Rochamonte para o Instituto Liberal:
A
concepção de política que Hannah Arendt nos apresenta remete a um
determinado contexto da Grécia; inspira-se na filosofia prática de
Aristóteles e retém elementos da filosofia kantiana.
Ao
vincular a política ao logos (“Onde cessa o falar, cessa a política”),
Arendt liga-se, de certa forma, à melhor tradição sofística, aquela que
prima por fazer valer, em meio a opiniões dissonantes, a opinião mais
decorosa, mais útil, mais justa. Tal tradição não confunde o logos com a
verdade nem com o lógico em sentido estrito, mas compreende-o como uma
espécie de razão comum, partilhada pelos homens, através da palavra.
Este
logos que perpassa os homens é o que funda a política e sua “posse”
nunca representa uma rigidez absoluta, de caráter fundamental, tal qual
aquela que caracterizaria a posse da verdade. Sua “posse”, ao contrário,
depende do diálogo, no qual as opiniões se entrechocam e se elevam a um
patamar de sabedoria prática assentada no consenso momentâneo.
Nesse
sentido, o homem dotado de logos não é um ser privilegiado que deve
governar, mas um cidadão cuja existência é compartilhada com todos os
outros nesse espaço comum chamado pólis. Não há privilégio político, há a
lei, porque a lei é concebida na partilha de valores aos quais todos se
submetem livremente. Essa lei, por sua vez, depende da existência do
indivíduo dotado de logos, porque só este é capaz de interpretá-la e
adequá-la aos aspectos contingentes da vida prática.
A política é uma atividade relacionada ao âmbito da ação humana e não do pensamento puro[1].
Não sendo da esfera do pensamento puro, sua condução depende mais do
consenso de opiniões do que do encontro de uma verdade absoluta. Esse
paradoxo, aparentemente inofensivo, qual seja o entrechoque entre
verdade e opinião em um terreno de ação humana, responde por critérios
distintos de concepções do político, critérios esses que vão dos mais
dogmáticos e autoritários aos mais relativistas e liberais.
De
fato, a concepção racionalista dogmática tendeu, na maioria das vezes,
para a defesa de sistemas políticos fechados e autoritários, enquanto a
concepção racionalista crítica abriu caminho para sociedades livres e
democráticas.
A
concepção kantiana de imaginação na Crítica da Faculdade de Julgar
permitiu a Arendt adequar a linguagem filosófica ao âmbito político. A
esfera da mentalidade alargada de que fala Kant seria a esfera de
atuação do pensamento no âmbito prático político[2].
Esse movimento interessa à reflexão hodierna porque traz o pluralismo
como aspecto intrínseco dessa faculdade que atua entre os homens e suas
opiniões. As opiniões fazem parte do entrechoque saudável de ideias que
induzem ao progresso social e ao desenvolvimento intelectual da
coletividade.
O
problema advém quando a opinião, que deveria ser sustentada nos fatos,
encontra-se viciada por considerar os próprios fatos como opiniões. É
como se o pensamento político representativo e plural perdesse a sua
base de apoio. Os fatos têm uma importância capital no desenrolar
político porque versam sobre o passado e o presente, de cuja
interpretação depende o futuro.
O
futuro de uma sociedade que se funda na deturpação dos fatos não se
abre para o novo, para o verdadeiro porvir, mas estaciona, estagnado
pela própria incapacidade de reflexão daqueles que ainda sequer
estabeleceram a realidade sobre a qual precisam deliberar.
Não
se pode, portanto, deixar de lado a problemática da verdade no âmbito
político mesmo que se compreenda que a verdade, quando abordada dessa
perspectiva, distancia-se ou transmuta-se em sua essência, o que
equivale a dizer que não há verdade religiosa ou filosófica no âmbito
político, mas há uma verdade própria a ser buscada em tal contexto.
A
verdade a ser buscada na política é de dois tipos: a verdade factual e a
verdade político-moral. A verdade factual é a matéria da opinião e a
opinião adequada ou qualificada é a matéria da verdade política. A
verdade política é a justiça, embora não se trate aqui da justiça
transcendente, mas da justiça legal, desde que esse legal tenha sido
formulado dentro do contexto do justo moral.
Fatos
e eventos, que constituem a própria textura do domínio político, são,
segundo Arendt, “entidades infinitamente mais frágeis que axiomas,
descobertas e teorias[3]”; isso se dá porque “ocorrem no campo das ocupações dos homens, em sempiterna mudança.[4]”
Ao ocupar-se, porém, do antagonismo entre verdade e política, a
tradição filosófica, de Platão a Hobbes, tratou da questão do erro, da
ignorância, da ilusão e da opinião, mas não tratou da falsidade
deliberada, da mentira vulgar, da mentira organizada que suprime ou
deturpa os fatos e eventos.
No
mundo contemporâneo, o velho antagonismo entre a verdade do filósofo e a
opinião comum ou entre a verdade religiosa revelada e as opiniões
mundanas cedeu lugar ao conflito entre a verdade factual e a política.
Nossa época tolera a diversidade de opinião em matéria religiosa e
filosófica, mas “a verdade factual, se porventura opõe-se ao lucro ou ao
prazer de um determinado grupo, é acolhida hoje em dia com mais
hostilidade do que nunca[5].”
As verdades incômodas ao poder até são toleradas nos países livres, mas
ao preço de serem transformadas em opiniões. Esse esbatimento, porém,
da linha de demarcação entre a verdade factual e a opinião equivale,
segundo Arendt, a uma das numerosas formas que a mentira pode assumir.
Fato
e opinião não se confundem nem se opõem, mas se complementam, porque
pertencem ao mesmo domínio. O fato, uma vez estabelecido enquanto tal,
está para além do acordo, do consentimento ou da discussão. O elemento
distintivo da verdade factual é ter como o seu contrário não a ilusão ou
a opinião, mas sim a mentira. A opinião requer a verdade factual como
suporte e a própria “liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a
informação factual seja garantida e que os próprios fatos não sejam
questionados[6].”
Alguém
poderia levantar uma objeção perspectivista, do tipo inspirado na
famosa frase de Nietzsche, “não existem fatos, apenas interpretações”,
ou apontar as dificuldades inerentes ao trabalho do historiador que,
para organizar os fatos, precisa fazer determinadas escolhas e optar por
determinados métodos, o que já implicaria uma interpretação. Hannah
Arendt não nega, porém, tais dificuldades, mas assevera que elas “não
constituem argumento contra a existência de matéria factual, tampouco
podem servir como uma justificação para apagar as linhas divisórias
entre fato, opinião e interpretação ou como uma desculpa para o
historiador manipular os fatos a seu bel-prazer[7].”
A verdade factual não pode ser controlada, só pode ser descoberta. O
controle da verdade factual ou o seu encobrimento é a manipulação ou a
mentira.
A verdade factual é política por natureza[8], enquanto a verdade filosófica é, por natureza, não política[9].
A
única forma de a verdade filosófica entrar no âmbito político sem se
tornar tirânica é através do exemplo. Ela precisa do exemplo como
intermediário para adentrar o espaço entre os homens; ela requer que o
próprio indivíduo que a proclama dê seu testemunho a fim de persuadir.
No caso de Sócrates, por exemplo, sua sentença de que “é preferível
sofrer o mal a praticá-lo” foi validada pela sua própria conduta ao
recusar-se a fugir após proclamada sua sentença de morte.
A
relação do filósofo com os fatos não é a mesma do cidadão. O cidadão
precisa dos fatos para alcançar uma opinião e, a partir dessa opinião,
posicionar-se diante da sua comunidade. O filósofo precisa dos fatos
para alcançar uma verdade racional e, através desta, especular dentro do
seu contexto e do seu linguajar específico. Importa, assim,
desvencilhar a filosofia da política apenas no sentido de não confundir
os graus de convencimento da verdade alcançada em cada âmbito. Se a
política não resguardar o espaço da opinião, ela tenderá para a tirania.
O
problema da mentira se impõe, portanto, mais como um problema político
do que como um problema filosófico. A mentira não afeta muito o filósofo
porque ele não é dado a agir, mas a pensar e a buscar verdades. O
político e o cidadão, por outro lado, são instados a agir e precisam de
elementos norteadores para suas ações. Esses elementos não podem ser
persuasivos a ponto de coagirem, mas devem ser persuasivos a ponto de
inclinarem. Esse grau de persuasão é obtido por intermédio da opinião
qualificada e imparcial formada a partir da análise dos fatos.
O
problema da mentira torna-se mais complexo na contemporaneidade devido,
entre outros fatores, à possibilidade da manipulação em massa de fatos e
opiniões. Tomando isso em consideração, Arendt analisará as diferenças
entre a mentira política tradicional e a moderna mentira organizada.
Enquanto a primeira incidia habitualmente sobre intenções ou sobre
segredos que nunca tinham se tornado públicos, a segunda incide sobre
coisas conhecidas praticamente de toda a gente[10].
Outra
diferença importante é que a mentira tradicional implicava apenas
particulares, dirigindo-se prioritariamente ao inimigo que pretendia
enganar; os homens de estado ou diplomatas que se ocupavam da mentira
conheciam e preservavam a verdade, sem se tornarem vítimas de suas
próprias falsificações. As mentiras modernas, no entanto, envolvem toda a
gente e costumam produzir o autoengano: elas “são tão grandes que
requerem um completo rearranjo de toda a trama factual, a criação de
outra realidade, por assim dizer, na qual se encaixem sem remendos,
falhas ou rachaduras, exatamente como os fatos se encaixavam no seu
próprio contexto original[11]”.
As
reflexões acima elencadas acerca das relações entre política e verdade
mostram que a relação é tensa, com tendência de desvantagem para a
verdade quando em confronto com o poder. Não obstante, afirma Arendt, a
verdade tem uma força própria adquirida do seu caráter insubstituível.
De todo modo, é preciso atentar para os riscos existentes da extensão do
domínio político para instâncias nas quais a importância política está
justamente no caráter apolítico do exercício de suas funções.
O
poder judiciário, por exemplo, assim como as instituições de ensino
superior, são apontados como instituições públicas que, embora
estabelecidas e apoiadas pelos poderes, precisam estar ciosamente
protegidas do poderio social e político[12].
A imprensa também precisaria “ser protegida do poder governamental e da
pressão social com zelo ainda maior que o poder judiciário, pois a
importantíssima função política de fornecer informações é exercida, em
termos estritos, exteriormente ao domínio político[13]”.
A
solidão do filósofo, o isolamento do sábio e do artista, a
imparcialidade do historiador e do juiz, e a independência do
descobridor de fato, da testemunha e do repórter são elencados por
Arendt como modos de vida solitários que requerem o não-envolvimento e a
imparcialidade, a libertação do interesse pessoal no pensamento e no
juízo.
Diante
do risco que o poder impõe à verdade, é indispensável que sejam
resguardados do domínio político esses espaços e modos de vida onde a
verdade é possível. Afinal, quando a comunidade está totalmente lançada
na mentira, “a veracidade como tal, sem o apoio das forças distorcivas
do poderio e do interesse, se torna fator político de primeira ordem.
Onde todos mentem acerca de tudo que é importante, aquele que conta a
verdade começou a agir[14]”.
Notas
[1]
“Para Hannah Arendt o campo da Política não é o da razão pura – como
queria Platão – nem o da razão prática como aparentemente, segundo ela,
se pensa que teria sido a posição de Kant, pois em ambos os casos os
modos de asserção do conhecimento têm uma estrutura discursiva
monológica. As verdades matemática e científicas se caracterizam por
conter um elemento interno de coerção que as torna indiscutíveis. A
evidência racional ou a prova empírica implicam na submissão. A verdade
filosófica, a verdade moral e própria verdade revelada também têm uma
estrutura monológica, pois dizem respeito ao homem em sua singularidade.
[…] A política, entretanto, como aponta Hannah Arendt, se insere num
outro contexto e o seu campo é o do pensamento plural”. (LAFER, Celso.
Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt)
[2]
“Na interpretação de Hannah Arendt, Kant, na Crítica do juízo, salienta
uma maneira de pensar no plural, que consiste em ser capaz de pensar no
lugar e na posição dos outros em vez de estar de acordo consigo mesmo. É
o que Kant chama de mentalidade alargada. O alcance e a força do juízo
de mentalidade alargada está na concordância potencial com os outros. A
sua área de jurisdição não é a do pensamento puro, do diálogo do eu
consigo mesmo, mas sim a do diálogo com os outros com os quais devo
chegar a um acordo. Este juízo, portanto, não tem validade universal,
mas sim validade específica, limitada às pessoas com as quais dialogo
para chegar a um acordo. Este diálogo requer um espaço – o espaço da
palavra e da ação – que constitui o mundo público onde surgem estes
tipos de juízo.” (LAFER, Celso. Da dignidade da política: sobre Hannah
Arendt)
[3] ARENDT, Hannah. Verdade e Política. In Entre o passado e o futuro. São Paulo. Perspectiva, 2016. p.289
[4] iIbid p.289
[5] Ibid p.293
[6] Ibid p.295
[7] Ibid.296
[8]
“A verdade factual relaciona-se sempre com outras pessoas: ela diz
respeito a eventos e circunstâncias nas quais muitos são envolvidos; é
estabelecida por testemunhas e depende de comprovação; existe apenas na
medida em que se fala sobre ela, mesmo quando ocorre no domínio da
intimidade. É política por natureza.” (Ibid p.295)
[9] “Visto que a verdade filosófica concerne ao homem em sua singularidade, é, por natureza, não política” (Ibid p.304)
[10] Ibid p.312-313
[11] Ibid p.313
[12] Ibid p.321
[13] Ibid p.322
[14] P.310
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