POLITICA LIVRE
Sediar a Copa do Mundo representa o passo mais largo do Qatar na tentativa de consolidar uma política externa diversificada, projetando globalmente o pequeno país do Golfo para colocá-lo no caminho de se tornar uma potência geopolítica na região, mesmo em cenário considerado adverso.
O Qatar tem 11,5 mil quilômetros quadrados, metade da área de Sergipe, e menos de 3 milhões de habitantes, similar ao Mato Grosso do Sul. Geograficamente, enfrenta limitações em função de a única fronteira terrestre se dar com a Arábia Saudita —mas o país conseguiu ganhar importância a ponto de, em certa medida, rivalizar com o vizinho.
A ascensão no xadrez geopolítico resulta de décadas de estratégias diplomáticas ousadas, aliadas a um esforço de relações-públicas, com o propósito de não deixar o país restrito à esfera de influência saudita.
O projeto é liderado pelo atual emir, Tamim bin Hamad al-Thani, no poder desde 2013. Ele dá continuidade ao trabalho do pai, Hamad bin Khalifa, que comandou o regime a partir de 1995 —o Qatar é uma monarquia absolutista na qual o emir concentra todo o poder.
O país tem boas relações com potências da Otan, abrigando bases militares de EUA e Turquia, ao mesmo tempo que dialoga com o Irã, rival dos americanos, e grupos fundamentalistas como a Irmandade Muçulmana e o Talibã, que tem até uma representação em Doha —o que leva a acusações de que o regime apoia extremistas, entre os quais o Estado Islâmico e a Al-Qaeda.
Ativa e diversificada, essa política externa visa garantir segurança e evitar o isolamento político em função do tamanho e da posição territorial, diz Danny Zahreddine, pesquisador libanês e professor de relações internacionais da PUC Minas.
“A Arábia Saudita, grande potência, esperava de todos os demais membros do Conselho de Cooperação do Golfo [organização econômica da qual o Qatar faz parte] uma relação de quase tutelagem”, explica. “As políticas de Riad, dos Emirados Árabes Unidos e do Bahrein são convergentes; o Qatar diverge por sentir que a diversificação da política externa cria mais segurança.”
Essa posição catariana aparentemente dúbia é também considerada estratégica para Washington, que usa o país como ponte para diálogos com grupos rivais e discussões de temas sensíveis à região. Do outro lado, o preço se fez cobrar na forma de atritos com os sauditas.
Foi numa tentativa de aproximação com Riad que Doha, em 2015, passou a reforçar a coalizão militar liderada pelos vizinhos que atuava no Iêmen com o objetivo de evitar o avanço do grupo rebelde houthi, apoiado pelo Irã e que participou da derrubada do governo local.
Três anos depois, porém, a relação entre Arábia Saudita e Qatar azedou, com o hoje anfitrião da Copa expulso da aliança. Al-Thani foi acusado de dar declarações em apoio a grupos terroristas —o que autoridades catarianas negam, apontando que os sauditas levaram em conta fake news divulgadas em uma ação de hackers na Qatar News Agency, a agência estatal do país.
A ruptura foi seguida por outros países, como Egito, Bahrein e Emirados Árabes, numa tentativa de isolar o Qatar. Doha conseguiu driblar os efeitos de embargos diplomáticos, comerciais e de viagens graças às relações construídas ao longo das últimas décadas, segundo Zahreddine. Durante o período de bloqueios, Turquia e Irã foram algumas das nações que providenciaram suprimentos.
Com o fracasso da tentativa de asfixiar o Qatar, a ação da diplomacia fez com que as sanções fossem suspensas e as relações, retomadas. A reabertura foi mediada pelo ex-presidente dos EUA Donald Trump —o republicano concentrou esforços em buscar acertos na região para aproximar os países árabes de Israel e, assim, isolar ainda mais o Irã.
Ato simbólico da reaproximação se deu na terça-feira (22), quando o emir catariano colocou uma bandeira da Arábia Saudita sobre os ombros para comemorar a histórica vitória do país sobre a Argentina.
Se as relações exteriores são complexas, internamente a relativa estabilidade se dá às custas do absolutismo hereditário, com restrições à atividade democrática. Observadores apontam violações sistemáticas aos direitos humanos e supressão de liberdades civis, especialmente para mulheres e grupos LGBTQIA+ —a homossexualidade é passível de prisão.
A demonstração de força em relação à Fifa, no veto à venda de bebidas alcoólicas durante partidas do Mundial, foi um lembrete do peso que tem a sharia, a lei islâmica, no país. Acusações de descaso, remuneração ruim e abusos trabalhistas com operários que atuaram nas obras dos estádios acenderam o alerta para a desigualdade.
Isso apesar de o país se vender como cosmopolita e de alto nível de renda. Segundo o Banco Mundial, o PIB per capita é de US$ 61,2 mil (R$ 327,4 mil), um dos mais altos do mundo; no Brasil, é de US$ 7.518 (R$ 40,2 mil).
Rico em petróleo, o Qatar tem aumentado os investimentos na produção de gás natural liquefeito nos últimos anos —condensado, o produto é transportado em navios, eliminando a necessidade de gasodutos. Beneficia o país o fato de o gás do Oriente Médio estar cada vez mais cobiçado devido à crise energética que atinge a Europa após a redução no fornecimento russo no contexto da Guerra da Ucrânia.
Não só. No último dia 21, China e Qatar anunciaram um acordo de 27 anos para levar gás do Oriente Médio ao gigante asiático. Parte dos lucros é revertida nas ações de soft power, segundo Monique Sochaczewski, especialista em Oriente Médio e professora do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa).
Doha investe em estádios e times de futebol europeus, como o francês PSG, de Neymar. Mantém ações com marcas famosas e hotéis de luxo. Despeja recursos em infraestrutura e educação ao redor do mundo.
Só nos EUA, o Qatar Investment Authority, fundo soberano do país, investiu mais de US$ 30 bilhões (R$ 160,5 bilhões), mais da metade disso nos setores imobiliário e de infraestrutura, segundo o Departamento de Estado americano —a cifra deve alcançar US$ 45 bilhões (R$ 240,7 bilhões) com ações já planejadas.
Ainda mais importante é a emissora Al Jazeera, criada por um decreto do emir em 1996. Principal canal de notícias do mundo árabe, ela consegue transmitir a visão catariana para o mundo.
Zahreddine afirma que o diálogo da linha editorial da rede com o Ocidente é fundamental na boa aceitação. “No caso da Ucrânia, o tom é muito mais favorável a Kiev, não a uma visão russa ou chinesa”, diz. “Mas isso não é considerado positivo por autocratas do Oriente Médio, que em alguns casos se sentem atacados.”
Não à toa, durante a crise de 2017, uma das exigências para a retomada das relações era o fechamento da Al Jazeera, o que foi ignorado por Doha. Com a Copa, o país agora consegue a maior projeção em âmbito global de sua história.
Renan Marra / Folha de São Paulo
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