Antes de deixar a Presidência, Bolsonaro planta aliados na Comissão de Ética e, por ora, nada permite prever a moderação de seus seguidores antidemocráticos e violentos, cada vez mais minoritários. Rolf Kuntz para o Estadão:
A
semana começou com uma piada pronta, Jair Bolsonaro recorrendo a uma
comissão de ética, mas a graça logo sumiu, quando golpistas alinhados ao
presidente derrotado intensificaram bloqueios de estradas e violências
contra pessoas. As manobras chegaram também à Justiça. A tentativa do
presidente do PL, Valdemar Costa Neto, de contestar de novo a eleição
foi parte de mais um conjunto de ações antidemocráticas lideradas ou
apoiadas pelo chefe de governo. A jogada foi repelida e punida pelo
presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes,
com multa de R$ 22,9 milhões e bloqueio do fundo partidário. Dirigentes
do PP e do Republicanos, partidos da coligação bolsonarista, negaram
envolvimento na ação e deixaram o PL sozinho na aventura. Faltam, no
entanto, autoridades policiais empenhadas em reprimir o banditismo
bestial voltado até contra crianças.
Banditismo
foi praticado por quem impediu um pai, em Mato Grosso, de levar um
menino de nove anos para uma cirurgia no olho. “Que fique cego”, disse
um dos manifestantes armados. O garoto foi finalmente levado, depois de
horas, por um caminho no meio de uma fazenda. Em Goiás, um bloqueio de
estrada retardou o envio de um coração a São Paulo para transplante. Em
Rondônia, uma mulher deixou de assistir aos momentos finais da mãe
porque manifestantes dificultaram sua passagem. Ainda em Mato Grosso,
estudantes tiveram de caminhar quilômetros para fazer a prova do Enem,
porque seu ônibus foi impedido de passar.
O
mesmo banditismo político tem dificultado a vida de brasileiros em todo
o País, principalmente depois da derrota eleitoral de Jair Bolsonaro.
Já não é fácil distinguir ideologicamente quem bloqueia estradas, quem
protesta nas cidades contra o resultado das urnas e quem se manifesta,
diante de quartéis, pedindo intervenção militar. Qual a justificativa,
nesta altura, para contestar a contagem dos votos? Que indícios
fundamentam a dúvida? Que argumentos técnicos são invocáveis?
Se
argumentos técnicos e legais se tornam irrelevantes, insistir no
protesto deixa de se confundir com o mero exercício de um direito
básico. Já não se protesta para expressar uma dúvida legítima.
Protesta-se para acompanhar quem rejeita o resultado oficial da eleição.
Se todos se misturam dessa forma, são todos, na prática, igualmente
perigosos para a democracia. Desejável para alguns, a quebra
institucional pode ser apenas um risco imaginável para outros. Mas, se
esse risco é aceito, quem de fato se exclui, na prática, do campo dos
extremistas, dos indivíduos dispostos a admitir um golpe?
Essa
pergunta é especialmente importante, neste momento, por seu sentido
prático. Com ou sem banditismo explícito, a ação dos extremistas é
inegável e, obviamente, bem vista pelo presidente Jair Bolsonaro e por
seus companheiros. Para ele, a disputa eleitoral de nenhum modo se
encerrou com o resultado oficial. Enquanto puder contestar as urnas de
alguma forma, ele insistirá nesse jogo. Ao tentar uma ação perante o
TSE, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, claramente cumpriu uma
tarefa ditada por seu líder atual.
A
mesma tarefa é cumprida, de modo mais barulhento, mais escandaloso e de
forma criminosa, por quem bloqueia ruas e estradas e se impõe pela
força aos demais cidadãos. A omissão de autoridades policiais tem
facilitado a movimentação golpista. Criticada por alguns como excessiva,
a ação do ministro Alexandre de Moraes tem criado algumas das poucas
barreiras montadas, até agora, contra pressões golpistas.
Mas
o presidente derrotado já vai além da contestação das urnas. Ao nomear
aliados para a Comissão de Ética Pública da Presidência, com mandato de
três anos, ele de alguma forma se infiltra na gestão de seu sucessor.
Bolsonaro recorrendo à ética, ou a uma comissão de ética, seria apenas
mais uma piada pronta, se a sua reação à derrota acabasse por aí. Outro
presidente aceitaria o resultado da eleição, lamberia as feridas e
trataria de se preparar para novas disputas. Para o atual chefe de
governo as coisas devem ser mais complicadas. Para admitir sem esperneio
a vitória do oponente, na disputa eleitoral, é preciso ser mais
adaptado ao jogo democrático. Além disso, deixar a função pública
envolve o risco de enfrentar a Justiça comum, sem os possíveis
benefícios do foro especial.
Discípulo
de Donald Trump, Bolsonaro provavelmente se esforçará, com a
colaboração de seus filhos, para continuar mobilizando forças
antidemocráticas. Trump tem tido algum sucesso nesse tipo de
mobilização, embora tenha fracassado em todas as tentativas de contestar
a vitória eleitoral do democrata Joe Biden. Seus seguidores mais
entusiasmados, assim como os de Jair Bolsonaro, parecem dar pouca
importância ao fracasso de seu líder diante das instâncias oficiais.
Mas
o sucesso de Trump em manter tantos seguidores pode ser instrutivo para
os brasileiros comprometidos com a democracia. Seria imprudente, agora,
imaginar um quadro muito menos perigoso a partir de 1.º de janeiro.
Melhor esperar um pouco mais antes de relaxar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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