Fazer boa comédia nunca foi tão fácil, o guião já chega pronto. O movimento “woke” em geral e as “políticas identitárias” em particular são ridículos o suficiente para dispensar adornos.
A crônica semanal de Alberto Gonçalves para o Observador:
Estreou
na Netflix o novo espectáculo de stand up de Ricky Gervais,
“SuperNature”. A data? 24 de Maio. A hora? Cerca de 10 minutos antes de
alguém recortar o pedaço em que ele goza com os transsexuais, publicá-lo
nas “redes sociais” e a internet rebentar de raiva. O programa tem
graça. O pedaço em questão também. Gervais aproveita um facto
relativamente antigo, que recentemente virou interdito: ao contrário dos
homens, as mulheres não têm pénis. A propósito das “novas mulheres”, as
que “têm barba e pila”, uma amostra: “Agora as mais antiquadas dizem:
‘Ai, querem usar as nossas casas de banho’. Por que não poderiam usar as
vossas casas de banho? ‘Porque são para mulheres’. Elas são mulheres –
vejam os seus pronomes! Há alguma coisa nesta pessoa que não seja de
senhora? ‘Bem, o pénis dele.’ DELA, seu preconceituoso! ‘E se ele me
violar?’ Se ELA te violar!”
Fazer
boa comédia nunca foi tão fácil. Por dois grandes motivos. O primeiro é
que o guião já chega pronto. O diálogo simulado acima é completamente
plausível. Gervais não inventa nada. O movimento woke em geral e as
“políticas identitárias” em particular são ridículos o suficiente para
dispensar adornos. Há mesmo quem defenda que o sexo (ou o “género”, no
jargão em voga) não depende dos órgãos reprodutivos mas da convicção
individual. Notem que não digo que um sujeito não possa preferir ser
mulher, ou sentir-se mulher, ou tentar parecer-se anatomicamente com uma
mulher. Digo que isso não invalida um pormenor, pueril ainda há meia
dúzia de anos: o sujeito continua a não ser uma mulher. E teimar no
contrário é, além de um acto primitivo e uma negação cega dos
conhecimentos científicos básicos, engraçado.
Um
princípio similar leva a que, para lá do sexo oposto, seres humanos se
“assumam” como animais, personagens de ficção ou objectos inanimados.
Basta mudar o pronome, a farpela e os derradeiros vínculos à realidade.
Desde que ninguém se “assuma” como membro de uma etnia diferente da
biológica, a biologia que lixe: o fundamental é a criatura estar bem
“consigo própria”. Eu, por exemplo, apenas estarei bem “comigo próprio”
quando romper com as amarras da naturalidade e até da singularidade e me
definir enquanto dezassete polacos. Lá para terça ou quarta-feira
tenciono meter a papelada no registo civil (o pronome será “tamte”,
“aqueles” em polaco).
O
segundo grande motivo pelo qual a boa comédia nunca foi tão fácil é que
hoje temos dois pretextos de galhofa. Achamos graça quando o comediante
conta a piada e achamos graça quando a ira dos taradinhos do Twitter se
ergue contra o comediante. Se nos alhearmos das componentes fascista e
inquisitorial, a indignação woke é divertidíssima. No caso de Gervais,
como de resto acontece com frequência, as dezenas de milhares de “posts”
furiosos não o acusam de distorcer o evangelho “identitário” para
efeitos de enxovalho, o que, repito, ele não faz nem precisa de fazer. A
fúria dessa gente advém justamente do facto de o artista britânico se
limitar a transcrever os “argumentos” em jogo. E se há coisa que os
fanáticos não toleram é que as suas posições absurdas e totalitárias
alimentem a paródia alheia.
Curiosamente
ou não, apesar das abébias não me lembro de o humor andar tanto pelas
ruas da amargura. Excepções, cada vez mais excepcionais, à parte, a
comédia actual é uma tristeza – e o paradoxo não é fortuito. Há meses vi
uma rábula do “Saturday Night Live” em que, eu fique ceguinho, se
gozava com os cépticos das políticas a pretexto da Covid. De Lenny Bruce
e George Carlin, que nestes tempos seriam perigosos “negacionistas” e
“homofóbicos”, saltou-se, com umas escalas decentes pelo meio, para a
defesa amestrada dos governos de esquerda e das tresloucadas “causas” da
esquerda. Nos delírios woke não se toca, a menos que para pregar a
“tolerância”, a “diversidade” e a “inclusão”. E se se tocar, arrisca-se o
“cancelamento”, que é o eufemismo em vigor para difamação, perseguição e
censura. Se forem ricos e influentes o bastante, alguns profissionais,
como Gervais, Dave Chappelle e Bill Burr, insistem em resistir ao ódio.
Outros, como Kevin Hart, cedem-lhe (ao que me constou). Um terceiro e
selecto grupo, que inclui Louis C. K. ou Woody Allen, não escapou à
fogueira. A vasta maioria, leia-se os que lutam por uma carreira, não
tem hipótese. Em “SuperNature”, Gervais fala dos novatos que, nos clubes
de “stand up”, assinam termos de responsabilidade em que se comprometem
a não ofender “minorias”.
Eis
o ponto: as “minorias”, ou essencialmente os “activistas” que ganham a
vida à custa delas, não admitem ser ofendidas (embora admitam ofender).
Dado que o humor implica com frequência a ofensa, os “activistas” não
admitem o humor. Dado que o humor exige liberdade, os “activistas” não
admitem a liberdade. Aliás, esqueçam as minudências, que o verdadeiro
ponto é o seguinte: o movimento woke integra-se numa vasta ofensiva
contra a liberdade, e a favor da instauração de um mundo minado e
sombrio, que reduz os sujeitos a sombras ordeiras e as relações à
chantagem implícita. Idealmente, não seríamos pessoas, e sim – aqui não
há acasos – máscaras. É por isso que a comédia, a autêntica e subversiva
(passe a redundância), é um dos obstáculos e um dos alvos. É por isso
que é fundamental a sobrevivência do riso, um estremecimento que nos
ajuda a manter livres e humanos. É por isso que essa é a resposta
adequada à “ideologia de género” e peçonhas similares: rir, que só não é
o melhor remédio porque o fanatismo não tem cura.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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