Sem respeito e compreensão do passado, as democracias reduzem-se a uma conquista tecnológica sem fundamentos nem objetivos. Se ignorarmos a diversidade da pessoa, o poder político torna-se imparável. André Abrantes Amaral para o Observador:
Após
o 25 de Abril de 1974 confundia-se a direita com a resistência à
mudança e a esquerda com a revolução. Mais tarde, fruto dos governos de
Thatcher e Reagan, a direita também passou a ser associada à preferência
pelo indivíduo enquanto a esquerda privilegiava o colectivo em
detrimento do individual. Uma era egoísta, a outra solidária. Foram
tempos fáceis, pelo menos para quem saía a ganhar com a qualificação. A
sinalização da virtude não é um vício de agora; tem uma longa história.
Sucede
que estas qualificações apresentavam uma falha de raciocínio: se a
direita de Thatcher e Reagan prezava o indíviduo sobre o colectivo como é
que podiam ser contra a mudança? Na verdade, sendo de direita, Thatcher
e Reagan defendiam a liberdade económica associada à liberdade
política. Acrescentavam que sem liberdade económica não existiria
progresso, evolução política e menos ainda social. Ou seja, aqueles dois
não podiam ser contra a mudança. Por alguma razão, a grande revolução
liberal do século XX foi feita por dois conservadores à frente de dois
partidos igualmente conservadores. Mais: tanto um como o outro
combateram o comunismo e o socialismo realçando a desumanidade destas
duas ideologias. Tanto para Reagan como para Thatcher, o socialismo
prezava os números e a tecnocracia em detrimento das pessoas, das
comunidades e da vida social. Num artigo publicado no Daily Telegraph em 16 de Maio de 1978, Thatcher chegou a referir que o indíviduo apenas se completava quando ao serviço dos outros e de Deus.
Como diz João Pereira Coutinho, em ‘Conservadorismo’ (D. Quixote, 2014),
“Somos todos conservadores”. Todos temos essa ‘disposição’. Pereira
Coutinho cita Oakeshott, “essa forma de ser e de agir que levará o
conservador a usar e desfrutar aquilo que está disponível em vez de
desejar ou procurar outra coisa”. Uma disposição conservadora que se
distingue do conservadorismo político ao ponto de “nem sempre
coexistirem no mesmo indivíduo”. Na verdade, e continuando com JPC, há
pessoas com disposições conservadoras que não se revêem nos partidos
conservadores e quem seja progressista e vote em partidos conservadores.
É esta possibilidade de existirem vários conservadorismos que permite
conservadores que se opõem ao livre comércio ao mesmo tempo que outros
que lhe são totalmente favoráveis. Esta é uma diversidade que assenta no
reconhecimento (que devia ser óbvio, mas não é para muitos) que as
pessoas são todas diferentes entre si e que mudam ao longo das suas
vidas.
Sem
este reconhecimento, sem a aceitação que as pessoas são diferentes
entre si e que vivem em sociedade e se organizam ou aderem a associações
de variadíssima ordem e com os mais diversos objectivos, a liberdade
transforma-se num fim político em si mesmo. Algo imposto pelos
auto-intitulados conhecedores da verdade. A luta pela liberdade torna-se
na exigência prepotente daqueles que nos querem libertar do que não
sabemos que nos prende. O certo é que o Período do Terror francês não
nasceu do nada, à semelhança dos regimes sanguinários que marcaram o
século XX. Em comum tinham a vontade de libertarem a humanidade de
acordo com desígnios que alguns vislumbravam.
Na
actualidade, o fenómeno não assume essa gravidade, mas existem sinais
que nos deviam deixar de sobreaviso: vejam-se as medidas para a
igualdade de género, algumas das quais sem qualquer conhecimento das
pessoas a quem se dirigem; a tentativa de proibição dos automóveis
circularem aos domingos na Avenida da Liberdade, em Lisboa; o fecho de
ruas sem que se ouçam os implicados por essas medidas ou ainda as
soluções mais inocentes como a aposta cega nas ciclovias, mesmo que à
custa da destruição dos passeios para peões. Neste ponto concreto é
interessante como se repete, a favor das bicicletas e das trotinetes, o
mesmo erro que favoreceu os automóveis: um total desrespeito pelo peão,
por quem anda a pé; por sinal a forma mais ecológica de circular que o
ser humano até agora descobriu.
Sem
o respeito pelo concreto, sem o reconhecimento de algo maior que nós, a
liberdade torna-se ilimitada e um instrumento nas mãos de quem governa o
Estado. Um exemplo de um partido português que não coloca estes travões
na luta pela sua liberdade é o Livre. Uma leitura do seu último
programa eleitoral esclarece melhor o que pretendo dizer. Veja-se a
proposta 2.3 no capítulo ‘Igualdade, Justiça Social e Liberdade’.
Ou a 2.4 que quer tornar obrigatória a formação dos advogados ‘sobre as
atualizações das convenções internacionais dos direitos das mulheres’
esquecendo que os advogados são profissionais liberais a quem a
obrigação de matérias de estudo abre a porta ao fim de uma independência
profissional que é essencial para a manutenção das bases de um Estado
de Direito. São pormenores, alguns exemplos que comprovam o quanto a
luta social sem freios pela liberdade se pode traduzir no fim dessa
mesma liberdade. É neste sentido que os liberais precisam dos
conservadores tal como estes aprenderam muito com aqueles. Essa
necessidade de diálogo torna-se ainda mais importante quando olhamos
para os EUA que, como tive oportunidade de referir num outro texto para este jornal,
podem estar em via de esquecer a sua herança liberal e se tornarem numa
mera potência tecnológica sem história nem referências. Sem destino nem
fim concreto à vista. Os liberais precisam mesmo dos conservadores
porque é importante termos os pés bem assentes na terra para não cairmos
num inferno.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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