Enquanto que, em ciência, a eficácia da simplificação pode ser testada, em política o arbitrário, aureolado pela “ciência”, pode singrar de modo incorrigível e persuadir multidões alegremente incautas. Texto do professor Paulo Tunhas, publicado pelo Observador:
Quando
tudo se parece jogar num acontecimento particular – por estes dias, a
guerra na Ucrânia – é difícil escrever sobre outras matérias. Mas com a
situação no terreno num impasse que só poderá ser resolvido caso o
Ocidente democrático aumente o auxílio em armamento pesado aos
ucranianos, convém buscar outras coisas que ocupem o espírito. Um
assunto óbvio é a eleição de Luís Montenegro para a chefia do PSD. Com
efeito, depois destes anos todos em que o PSD andou mergulhado numa
versão política da chamada disforia de género, com a descoberta por Rui
Rio que se tratava de um partido impecavelmente de esquerda, algo que o
corpo da agremiação, como o atestam os resultados eleitorais, acolheu
mal, a mudança é bem-vinda. O problema é que ainda é demasiado cedo para
conceber verdadeiramente o que se vai passar e não há vantagem
previsível, para quem não tem grande imaginação no capítulo, na mera
especulação.
A
guerra da Ucrânia permite, no entanto, algumas considerações gerais
sobre o modo como certas maneiras de pensar se revelam inadequadas
quando são transportadas de um objecto para outro objecto diferente,
algo que Aristóteles já há muito havia perfeitamente percebido. Tomemos o
exemplo clássico do caso, sempre muito elucidativo, do cientista que
fala de política. Seria de esperar que a racionalidade que supostamente
usa na sua actividade profissional funcionasse às mil maravilhas quando
discorre sobre a sociedade e os conflitos internacionais. Ora, é muito
instrutivo verificar que isso só muito raramente acontece. O mais das
vezes, verifica-se exactamente o contrário: a sua maneira de pensar
mostra-se por inteiro desadaptada ao novo objecto do seu interesse,
resultando daí que as suas análises e propostas se revelam radicalmente
inapropriadas para resolver o mínimo problema que a esfera política lhe
coloca.
Se
pensarmos bem, podemos descobrir várias razões para que assim seja. Uma
delas é quase óbvia. A ciência busca a simplicidade nas hipóteses que
formula. Se percorrermos a lista dos requisitos das boas hipóteses
científicas que a história das ciências nos legou, tanto sob a pena dos
filósofos da ciência como dos próprios cientistas, encontramos
invariavelmente entre os requisitos principais (a par, entre outros, da
fecundidade explicativa) o requisito da simplicidade, normalmente
associado aos da inteligibilidade, da elegância e da beleza. Se há
progresso no interior das teorias, ele deve-se muitas vezes a revisões
que assentam num aumento da exigência de simplicidade. Acontece, no
entanto, que essa excelente exigência não surte o efeito desejado quando
aplicada aos fenómenos sociais e políticos, por razões que convém
chamar ontológicas. O modo de ser da natureza é distinto do modo de ser
da sociedade, os seus respectivos objectos não podem ser determinados de
idêntica maneira. E, por essa razão, o que é um mérito num caso é um
demérito no outro. A simplicidade tende quase inevitavelmente a
transformar-se em simplismo.
Querem
um exemplo? Haverá hipótese mais simples e aparentemente dotada do
poder de tudo explicar do que aquela que atribui a uma única entidade o
monopólio da causalidade política no mundo humano? Tudo passa
imediatamente a fazer sentido, que é o que qualquer pessoa quer, até
porque relativiza de um modo quase mágico o sem-sentido com que somos,
no nosso dia-a-dia, obrigados a conviver. Peguemos numa proposição muito
corrente: tudo o que corre mal neste nosso planeta deve-se à acção
omnipotente do “imperialismo americano”. O corolário natural dessa
afirmação é que todas as restantes entidades políticas se limitam a uma
passividade essencial, exceptuando parcialmente aquelas que se colocam
na posição de servir o dito “imperialismo”, assim recebendo uma espécie
de actividade vicária. Como é bom de ver, só a actividade é susceptível
de engendrar a culpa – a passividade designa, quase por definição, a
inocência. Eis uma bela teoria, de uma simplicidade ímpar, cujo único
defeito é o não capturar minimamente as condições reais das relações
políticas, nacionais ou internacionais.
E,
no entanto, ela goza de um grande prestígio, até porque, mesmo quando
se reivindica do simples “bom senso”, sem se atribuir pergaminhos
científicos, aparentemente é conforme ao projecto da ciência: descobrir a
estrutura profunda que subjaz à estrutura da superfície e que por
inteiro a determina. Assim, o mundo superficialmente aparece como um
lugar de oposições várias em que cada entidade procura afirmar, a partir
da sua perspectiva própria, a sua existência, preferencialmente de
forma não violenta. Que sucesso explicativo não representa descobrir
que, no plano da estrutura profunda, uma única entidade é, de facto,
determinante! A lei da causalidade única, no plano da estrutura
profunda, oferece a chave que, simultaneamente, explica e desmistifica o
reino da aparência e, com tal desmistificação, abole a importância do
contexto e da contingência, puros efeitos de superfície.
Pelo
caminho, dissolve-se tudo aquilo que faz parte do elemento imaginário
que efectivamente caracteriza o que há de específico a cada sociedade. O
cientista que lida com a sociedade segundo os bons procedimentos das
ciências da natureza descura quase por obrigação tudo aquilo que está na
origem da maneira de ser própria de cada sociedade: as regras, os
costumes, o significado das instituições, as próprias necessidades que
para si inventam, as maneiras que criam para fazerem sentido do mundo.
Tudo isso lhe parece excedentário e irrelevante, isto é, eliminável pela
boa explicação. E fá-lo sem se dar conta que deita fora o bebé com a
água do banho. A diferença entre os astecas e os vitorianos quase
desaparece num ápice. E, com ela, quase inevitavelmente, a própria
história.
Dir-se-á
que todo este processo que nos conduz da simplificação científica ao
simplismo político é afim daquele que observamos nas vulgares teorias
conspiratórias. E é, de facto, afim. O princípio da causalidade única,
bem como a explicação do visível pelo invisível, estabelecem um forte
traço de união entre as duas atitudes. É o mesmo tipo de satisfação do
espírito que é buscada: a descoberta de um sentido pleno e sem falhas.
Tal é o resultado mais aparente da busca científica da simplicidade
quando ela se metamorfoseia em simplismo político. Enquanto que, em
ciência, a eficácia da simplificação pode ser testada e corrigida, em
política o arbitrário, aureolado pelo prestígio da “ciência”, pode
singrar de modo incorrigível e persuadir multidões alegremente incautas.
Estou
muito longe de afirmar que o que escrevi atrás valha para todos aqueles
que se dedicam à ciência – o que seria absurdo. Limito-me a constatar
que se trata de um fenómeno mais vulgar do que seria desejável. E que
ele radica na convicção errónea de que um único estilo de racionalidade,
uma única maneira de pensar, vale identicamente para todos os objectos.
Não vale. Objectos diferentes obrigam-nos a pensar diferentemente. Não
se pode transportar, sem risco de violação da verdadeira
inteligibilidade, a maneira de pensar a natureza para a maneira de
pensar a sociedade.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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