Alguns
anos atrás, quando eu tinha acabado de mudar para este prédio, uma
vizinha de andar apertou a campainha segurando uma travessa de brownies
de boas-vindas. Esse era um gesto que até aquele momento eu nunca tinha
visto na vida real. Achava que só americanos, e ainda por cima
americanos de filmes, eram sociáveis o suficiente para fazer algo do
tipo.
Depois
ela começou a trazer brownies a cada duas, três semanas. Dizia que
gostava mais de fazer os brownies do que de comer, então eu e minha
mulher estávamos até ajudando se comêssemos alguns. Eu sempre a
convidava pra entrar, e conversávamos um pouco enquanto comíamos os
brownies e bebíamos café. Ao ir embora ela deixava cinco ou seis
brownies, embora eu insistisse que não precisava. Eram muito bons. Não
duravam um dia em casa.
Um
dia eu a ouvi no elevador fazendo um comentário sobre política com uma
amiga. Não vou repetir aqui o que ela disse, porque pra falar a verdade
eu nem lembro direito. Mas foi algo que achei detestável. Saí do
elevador de cara fechada, e esperei que ela viesse trazer a próxima
travessa de brownies, o que aconteceu dois dias depois.
— Dessa vez fiz um pouco a mais… — ela começou a dizer, sorrindo. Mas encostei dois dedos no ombro dela e disse:
—
Fique sabendo que eu ouvi o que você falou no elevador. Na minha casa é
que você não entra! — e a empurrei com os dedos, fazendo com que ela
recuasse dois passos, muito surpresa.
E
a seguir fechei a porta na cara dela — mas não sem antes ter a
precaução de estender o braço e puxar a bandeja de brownies pra mim.
Comi
os brownies irritado. Que mulher péssima! Mas que brownies excelentes!
Logo fui tomado por uma sensação de grande vitória moral.
Como
eu previa, ela não voltou a tocar a minha campainha. E nos dias
seguintes comecei a pensar em como fazer para continuar comendo aqueles
brownies deliciosos. Podia, talvez, pedir alguns para outros vizinhos
que estivessem recebendo os brownies dela? Mas o problema é que eu tinha
falado tão mal da vizinha no prédio que ninguém mais falava com ela.
Depois
de algum tempo de abstinência, consegui arranjar um acordo com um
sujeito que tinha acabado de mudar para o prédio e não se incomodava com
o que a vizinha tinha dito. Ele aceitou me repassar os brownies, porque
não gostava de nada doce. Agora recebo dele cinco ou seis brownies por
mês, que como com delícia e ódio político.
O
que vocês diriam de alguém capaz de fazer uma coisa dessas? É claro que
nunca fiz nada disso. Essa história nunca aconteceu. Mas isso é
exatamente o que os fãs de Harry Potter fizeram com a autora da série,
J.K. Rowling.
A
HBO vai estrear em primeiro de janeiro de 2022 um especial de Harry
Potter com todos os atores principais e muitos dos secundários. Mas J.K.
Rowling, a criadora de todo esse mundo, não foi convidada. Ela vai
aparecer brevemente em imagens antigas, de uma época em que ela ainda
não havia caído em desgraça com os fãs por reclamar, no Twitter, de um
artigo que dizia “pessoas que menstruam” no lugar de “mulheres”.
Por
toda a parte os fãs de Harry Potter comemoraram que a criadora daquilo
que eles amam não vai aparecer numa celebração daquilo que eles amam.
“Nós vencemos, gente!!!”, berrou uma fã chamada Taquito Snowball no
Twitter.
Segundo
o NY Times, os fãs de Harry Potter estão em massa tentando se
distanciar de J.K. Rowling enquanto ainda consomem os livros e os
filmes. “Não quero dar para a J.K. Rowling a satisfação de tirar de mim
algo que eu amava quando era criança”, disse um fã, segundo o jornal.
“Não preciso da J.K. Rowling para nada”, disse outra fã.
Alguém
pode argumentar que, ao contrário do meu exemplo dos brownies, as
pessoas pagaram pelos livros e filmes de Harry Potter, e portanto
ficaram quites e ninguém deve nada a J.K. Rowling.
Mas
com livros isso não funciona assim, funciona? Há uma desconexão óbvia
entre o valor real de um livro e o seu preço, porque, se não houvesse,
um livro de Platão teria que custar muitas vezes mais do que um de
Leandro Karnal.
A
verdade é que um livro que amamos excede em muito o valor que pagamos
por ele. Eu, pelo menos, me sinto em dívida com todos os autores de
livros que foram importantes para mim. Paguei um pouco mais de cinquenta
reais pela minha cópia de A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, mas
certamente ainda estou devendo muito para aquele barbudo imbecil e
magnífico.
“Separar
o autor da obra”, esse ato considerado nobre, é uma vileza: é cuspir na
cozinheira e depois se deliciar com o prato. É tentar continuar amando
um canto da alma de uma pessoa enquanto se odeia a pessoa como um todo. É
condenar o autor ao Inferno, enquanto nos divertimos com a sua obra
debaixo de um caramanchão no Paraíso. É uma desculpa para a ingratidão —
e, no momento, não consigo pensar em nada mais baixo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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