A detecção cada vez mais precoce de tumores poderá levar a um estado de neurose e ansiedade pior que o gerado pela covid-19. Dagomir Marquezi para a Oeste:
Já
fez sua endoscopia neste ano? E a colonoscopia? O resultado da biópsia
já está disponível na internet? Já descobriu o motivo dessa tontura
persistente? Há quanto tempo aconteceu a última mamografia? Como está o
jato de urina? E a cor das fezes? E aquela verruga persistente no ombro?
A rouquidão continua? Perdeu peso muito rapidamente? Aquele caroço no
pescoço se nega a ir embora?
Bem-vindo
a Cancerland. Esta cidade imaginária é mais do que um território de
pessoas doentes. É um estado de espírito. O termo foi citado pelo
oncologista Siddhartha Mukherjee, formado pela Columbia University e com
meio século de experiência clínica.
Num
artigo recente para o Wall Street Journal, Mukherjee conta a história
de uma paciente que descobriu um pequeno tumor no seio. Passou pelo
procedimento básico: cirurgia, radio e quimioterapia. Teve alta. Estava
fisicamente curada. Mas nunca mais foi a mesma.
Em
vez de celebrar a vitória, a paciente escarafunchou a história da
família e conseguiu descobrir uma tia distante que havia morrido de
câncer no seio aos 70 anos. Passou a ser assombrada por uma remota
conexão genética. Pesquisou a internet em busca de possíveis casos de
“metástases ocultas” em pacientes que, como ela, estavam aparentemente
curadas. E pediu ao médico que fosse submetida, junto com a filha, à
“mais intensiva forma de vigilância de câncer”.
Uma
coisa é ter a doença. Outra é passar cada um de seus dias paralisado
pelo pavor de ficar doente. Quando se chega a esse ponto, a pessoa mais
saudável do mundo já é cidadã de Cancerland. Como define o doutor
Mukherjee, vive “se sentindo sob cerco do futuro”.
Nós
tivemos agora mesmo um exemplo desse fenômeno na forma da covid-19. O
medo natural de uma doença nova e perigosa e o pavor injetado com
objetivos políticos sórdidos fizeram com que pessoas se trancassem em
casa com medo de respirar, comer e conviver com outros seres humanos.
Algumas estão trancadas até hoje. Se foi assim com a covid, algo ainda
mais grave pode acontecer com o câncer.
Detalhes perturbadores antes invisíveis
A
busca — necessária — da detecção precoce de tumores está avançando
rapidamente. Profissionais da medicina pesquisam uma série de técnicas e
procedimentos que poderão estar disponíveis em pouco tempo. A era do
exame anual de rotina pode estar no fim.
Uma
dessas técnicas é a vigilância genética. O estudo de nossos
antepassados pode quantificar (através da inteligência artificial) a
predisposição que um indivíduo herdou para desenvolver um quadro
cancerígeno. Até aí, tudo bem. Mas como vai viver uma pessoa que se
impressiona facilmente se descobrir, por exemplo, que tem 68% de chance
de contrair um tumor maligno em algum ponto de sua existência? Pode ser
que nunca pegue nem um resfriadinho. Mas o medo já terá se transformado
numa doença.
Outra
novidade é a chamada “vigilância fisiológica”. Já existem estudos para
identificar sinais suspeitos no nosso sangue através da “biópsia
líquida”. (Homens já fazem isso com o exame de PSA — que pode alertar
para um possível câncer na próstata.) Aqueles altamente ansiosos terão a
chance de fazer um exame desses por dia, especialmente se tiverem algum
tipo de disposição genética para o câncer.
O
doutor Siddhartha Mukherjee lembra que mulheres podem carregar sinais
de câncer no ovário através do sangue. Mas isso não quer dizer que o
câncer vai se instalar no seu organismo. Com a biópsia líquida poderemos
chegar a um ponto em que descobriremos detalhes perturbadores antes
invisíveis circulando pelos nossos corpos. Os mais assustados optarão
por tratamentos invasivos e remédios pesados para curar uma doença que
não possuem. E se arriscarão a ficar doentes de verdade.
Todos
sabem — ou deveriam saber — que a detecção precoce de um câncer pode
ser a diferença entre um tratamento bem-sucedido e um óbito. Quanto
antes for detectado o tumor, melhor. E ele será apanhado cada vez mais
cedo. O problema com essa nova fase vai ser passar do limite do bom
senso e entrar num universo de neurose e ansiedade.
Passaportes unidirecionais
O
cientista alemão Sebastian Thrun, citado na reportagem do WSJ, imagina
um mundo em que os mais inocentes objetos de uso diário se tornarão
“armas de vigilância diagnóstica — uma banheira que examina seu corpo
para detectar massas anormais que podem exigir investigação; um espelho
que pode verificar se há sinais pré-cancerosos em seu corpo; um programa
de computador que (com o seu consentimento) vasculharia sua página do
Instagram ou Facebook enquanto você dorme à noite, avaliando mudanças
nas suas fotos que pudessem dar sinais da doença”.
Essa
ultravigilância levaria a mais detecções precoces? Sem dúvida. Mas
transformaria em potencialmente “cancerosas” pessoas que não são. E isso
aumentaria os custos médicos a um ponto que o tratamento de outras
doenças seria negligenciado. Acabamos de ver isso acontecer durante a
pandemia.
“Um
mundo em que o câncer fosse normalizado como uma condição crônica
administrável seria uma coisa maravilhosa”, escreveu o historiador e
médico Steven Shapin, em 2010. “Mas um mundo de fator de risco em que
todos nos consideramos pré-cancerosos não daria certo. Isso pode
diminuir a incidência de algumas formas de malignidade e, ao mesmo
tempo, aumentar enormemente o número de gente saudável sob tratamento
médico. Seria uma estranha vitória, em que o preço a ser pago para
impedir a propagação do câncer pelo corpo é sua propagação descontrolada
pela cultura.”
O
doutor Siddhartha Mukherjee fala do perigo que significa ter uma
passagem (mental) só de ida para Cancerland. “A romancista e crítica
Susan Sontag escreveu certa vez sobre um passaporte entre o reino dos
saudáveis e o reino dos enfermos, imaginando uma passagem bidirecional:
homens e mulheres podem adoecer, mas alguns retornam ao bem-estar. Ao
inventar a nova cultura de vigilância do câncer, temo que fechamos as
fronteiras dos reinos. Temo que agora vamos possuir passaportes
unilaterais para o reino da doença. O que encontraremos lá depende de
nós”.
O salão dos mil brasileiros
Segundo
o Instituto Nacional do Câncer, do Ministério da Saúde, o Brasil terá
uma média de 625 mil novos casos da doença por ano até 2022. Isso
corresponde a cerca de 0,3% da população brasileira. Em outras palavras:
imagine um salão lotado com mil brasileiros. Naquele salão, três
pessoas deverão contrair algum tipo de câncer. Desses três doentes, um
vai morrer.
Seria
ideal que nenhuma pessoa tivesse uma doença tão grave, e que ninguém
morresse por causa dela. Um único caso pode ser devastador para quem
adoece e para as pessoas ao seu redor. (Disso eu entendo: minha mãe foi
aquela única vítima no salão imaginário com mil brasileiros). Esses
números mostram que o fantasma é terrível. Mas numericamente não tão
grande quanto pode parecer por causa de sua fama sinistra.
A
cura para o câncer — através da prevenção ou do tratamento — está
chegando a cada dia. Boa parte dos que ficaram doentes hoje vive uma
vida próxima à que levavam antes do diagnóstico. Precisam de vigilância
constante, exames regulares, tratamentos. Mas a “sentença de morte” é
cada vez menos aplicada. É a chance para que a gente lide melhor,
mentalmente, com uma doença que muitos ainda nem ousam dizer o nome.
Nossa
Cancerland deveria ser um território para doentes reais, cada vez em
menor número e cada dia com melhores condições de atendimento e
tratamento. E vida que segue para resto de nós. Atentos aos sinais do
próprio corpo. Mas sem o pânico irracional que já nos causou tantos
problemas com a recente pandemia.
blog orlando tambosi
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