quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Eu acuso os fãs de Harry Potter

 



A crônica quinzenal de Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:


Alguns anos atrás, quando eu tinha acabado de mudar para este prédio, uma vizinha de andar apertou a campainha segurando uma travessa de brownies de boas-vindas. Esse era um gesto que até aquele momento eu nunca tinha visto na vida real. Achava que só americanos, e ainda por cima americanos de filmes, eram sociáveis o suficiente para fazer algo do tipo.

Depois ela começou a trazer brownies a cada duas, três semanas. Dizia que gostava mais de fazer os brownies do que de comer, então eu e minha mulher estávamos até ajudando se comêssemos alguns. Eu sempre a convidava pra entrar, e conversávamos um pouco enquanto comíamos os brownies e bebíamos café. Ao ir embora ela deixava cinco ou seis brownies, embora eu insistisse que não precisava. Eram muito bons. Não duravam um dia em casa.

Um dia eu a ouvi no elevador fazendo um comentário sobre política com uma amiga. Não vou repetir aqui o que ela disse, porque pra falar a verdade eu nem lembro direito. Mas foi algo que achei detestável. Saí do elevador de cara fechada, e esperei que ela viesse trazer a próxima travessa de brownies, o que aconteceu dois dias depois.

— Dessa vez fiz um pouco a mais… — ela começou a dizer, sorrindo. Mas encostei dois dedos no ombro dela e disse:

— Fique sabendo que eu ouvi o que você falou no elevador. Na minha casa é que você não entra! — e a empurrei com os dedos, fazendo com que ela recuasse dois passos, muito surpresa.

E a seguir fechei a porta na cara dela — mas não sem antes ter a precaução de estender o braço e puxar a bandeja de brownies pra mim.

Comi os brownies irritado. Que mulher péssima! Mas que brownies excelentes! Logo fui tomado por uma sensação de grande vitória moral.

Como eu previa, ela não voltou a tocar a minha campainha. E nos dias seguintes comecei a pensar em como fazer para continuar comendo aqueles brownies deliciosos. Podia, talvez, pedir alguns para outros vizinhos que estivessem recebendo os brownies dela? Mas o problema é que eu tinha falado tão mal da vizinha no prédio que ninguém mais falava com ela.

Depois de algum tempo de abstinência, consegui arranjar um acordo com um sujeito que tinha acabado de mudar para o prédio e não se incomodava com o que a vizinha tinha dito. Ele aceitou me repassar os brownies, porque não gostava de nada doce. Agora recebo dele cinco ou seis brownies por mês, que como com delícia e ódio político.

O que vocês diriam de alguém capaz de fazer uma coisa dessas? É claro que nunca fiz nada disso. Essa história nunca aconteceu. Mas isso é exatamente o que os fãs de Harry Potter fizeram com a autora da série, J.K. Rowling.

A HBO vai estrear em primeiro de janeiro de 2022 um especial de Harry Potter com todos os atores principais e muitos dos secundários. Mas J.K. Rowling, a criadora de todo esse mundo, não foi convidada. Ela vai aparecer brevemente em imagens antigas, de uma época em que ela ainda não havia caído em desgraça com os fãs por reclamar, no Twitter, de um artigo que dizia “pessoas que menstruam” no lugar de “mulheres”.

Por toda a parte os fãs de Harry Potter comemoraram que a criadora daquilo que eles amam não vai aparecer numa celebração daquilo que eles amam. “Nós vencemos, gente!!!”, berrou uma fã chamada Taquito Snowball no Twitter.

Segundo o NY Times, os fãs de Harry Potter estão em massa tentando se distanciar de J.K. Rowling enquanto ainda consomem os livros e os filmes. “Não quero dar para a J.K. Rowling a satisfação de tirar de mim algo que eu amava quando era criança”, disse um fã, segundo o jornal.

“Não preciso da J.K. Rowling para nada”, disse outra fã.

Alguém pode argumentar que, ao contrário do meu exemplo dos brownies, as pessoas pagaram pelos livros e filmes de Harry Potter, e portanto ficaram quites e ninguém deve nada a J.K. Rowling.

Mas com livros isso não funciona assim, funciona? Há uma desconexão óbvia entre o valor real de um livro e o seu preço, porque, se não houvesse, um livro de Platão teria que custar muitas vezes mais do que um de Leandro Karnal.

A verdade é que um livro que amamos excede em muito o valor que pagamos por ele. Eu, pelo menos, me sinto em dívida com todos os autores de livros que foram importantes para mim. Paguei um pouco mais de cinquenta reais pela minha cópia de A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, mas certamente ainda estou devendo muito para aquele barbudo imbecil e magnífico.

“Separar o autor da obra”, esse ato considerado nobre, é uma vileza: é cuspir na cozinheira e depois se deliciar com o prato. É tentar continuar amando um canto da alma de uma pessoa enquanto se odeia a pessoa como um todo. É condenar o autor ao Inferno, enquanto nos divertimos com a sua obra debaixo de um caramanchão no Paraíso. É uma desculpa para a ingratidão — e, no momento, não consigo pensar em nada mais baixo.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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