Filósofa nos convida a imaginar nossos desejos livres das estruturas de poder, mas é impossível domá-los. A crônica de João Pereira Coutinho para a FSP:
Não é todos os dias que uma reputada professora de Oxford nos apresenta o conceito de "unfuckability".
Mas
aconteceu: Amia Srinivasan, 36, é o fenômeno intelectual do momento —e a
sua coletânea de ensaios, "The Right to Sex: Feminism in the
Twenty-First Century" (Farrar, Straus and Giroux), é já considerada um clássico do novo pensamento feminista.
Das tribulações da pornografia à raiva dos "incels"
(celibatários involuntários), sem esquecer as relações íntimas entre
professores e alunos, não há território interdito para a indagação
filosófica de Srinivasan.
Mas
é o ensaio que dá título ao livro que merece maior atenção: será que
existe um "direito ao sexo", sobretudo para aqueles que têm pouco?
A
questão é respondida negativamente: em matéria sexual, ninguém deve
nada a ninguém. Acreditar no contrário seria aceitar, perversamente, que
os psicopatas "incels" têm alguma razão quando culpam as mulheres de não estarem disponíveis para aliviar as carências dos rapazes.
Porém,
se não existe um "direito ao sexo", não haverá um dever de reavaliarmos
os nossos valores para resgatar da "unfuckability" quem merece um
segundo olhar?
O
feminismo contemporâneo, segundo Srinivasan, centra-se apenas em
questões de consentimento, procurando saber se a relação sexual foi ou
não desejada.
Mas
essa posição, argumenta a autora, acabou por encerrar o feminismo na
lógica da livre troca capitalista: se o vendedor e o comprador
participam voluntariamente no negócio, parece que é indiferente saber
quais as condições que determinaram as dinâmicas da oferta e da procura.
Pois bem: Srinivasan está interessada nessas condições —as condições ideológicas do desejo. Aqueles que desejamos não são uma mera preferência pessoal ou natural. São o resultado de males vários —o racismo, o capacitismo, a gordofobia etc.— que levam a maioria a preferir corpos brancos a corpos negros, corpos perfeitos a corpos com deficiência, corpos magros a corpos gordos etc.
Naturalmente
que Srinivasan não defende qualquer política coerciva que obrigue os
seres humanos a sentirem desejo pelos "unfuckables", o que não deixa de
ser um alívio.
Ela
apenas nos convida a imaginar como seriam os nossos desejos se eles
fossem realmente livres, ou seja, não condicionados por estruturas de
poder (que, escusado será dizer, merecem ser desmanteladas).
Para
ela, imaginar esse mundo não apenas é necessário como possível: quem
disse que os nossos desejos não podem ser "transfigurados"?
Com
a devida vênia à filósofa, digo eu: a ideia de que, pela força da
vontade, é possível forçar o desejo por caminhos alternativos (e
socialmente menos injustos) é não entender a natureza visceral e
instintiva do desejo.
O
coração deseja o que o coração deseja, para citar o velho adágio, e não
o que os engenheiros sociais gostariam que ele desejasse.
Claro
que nessa dança os mais belos têm vantagem. Mas isso não decorre de
estruturas de poder que conscientemente marginalizam os feios.
Decorre,
tão só, do fato humano, demasiado humano, de a alma se agitar mais
facilmente com aquilo que é mais fácil. E não há coisa mais fácil do que
desejar o que é belo.
Mas
até essa regra tem exceções que a infirmam: só cabeças adolescentes
partem do pressuposto de que o desejo não acolhe outros corpos, de
outros tamanhos ou feitios.
O
que Amia Srinivasan nos pede —um segundo olhar para os "unfuckables"—
já acontece com um primeiro olhar, sem que a piedade, a compaixão ou a
justiça social tenham alguma coisa a ver com o assunto.
A única forma de conseguir uma distribuição equitativa de desejos
passaria sempre por um mecanismo coercivo em que os seres humanos
seriam emparelhados por todos os motivos, exceto pelo único que
interessa: a vontade de estarem juntos.
Seria,
paradoxalmente, um regresso ao passado e aos casamentos combinados que
se faziam, não por razões de inclusão, mas de propriedade (no duplo
sentido da palavra).
Bem
sei que Amia Srinivasan não aceita essa aberração. E que o seu convite
para questionarmos as razões por que desejamos o que desejamos é apenas
isso: um convite.
Mas,
sabendo que as relações entre os sexos serão sempre território íntimo e
movediço, talvez o máximo que podemos exigir é mesmo que o
consentimento esteja presente sem equívocos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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