Ao que parece, a busca pela vagueza se tornou método científico. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Desde
a sociologia da ciência, é comum colocar em questão as características
pessoais do estudioso como algo capaz de interferir no objeto de estudo.
O leitor torcerá o nariz por causa da vulgata relativista que tomou
conta da área: basta dizer que a ciência é feita por homens brancos cis
hétero para concluir que a Ciência é supremacista branca, machista e
lgbtquiabofóbica. E, depois de dizer tudo isso, esse povo endossa as
autoridades que, em nome da Ciência, nos mandam tomar mil doses de
vacina experimental. Eu queria muito que banho de pipoca fosse
considerado um saber baiano tão legítimo quanto o eurocêntrico, e que no
passaporte sanitário do estado houvesse as opções: AstraZeneca, Pfizer,
Coronavac, Janssen, Obaluaê.
Mas,
para convencer o leitor de que a empreitada é legítima, informo que
existe uma área de pesquisa chamada “suicidologia”. Uma coisa é a pessoa
resolver passar a vida estudando moluscos; outra, estudando suicídios. É
impossível que o objeto de estudo desses não tenha relação com a saúde
mental da maioria das pessoas que o escolhem. Assim, uma boa questão
epistemológica é pensar em áreas que são, pela natureza do seu próprio
objeto, para-raios de maluco.
Pensei
nessas coisas ao ler uma matéria do principal jornal baiano sobre
suicídio. Eis a manchete: “Machismo que mata homem: eles são oito em
cada dez vítimas de suicídio na Bahia”.
Taxas
de suicídios de homens e mulheres por 100.000 habitantes nos estados da
federação.| Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde
Detetive progressista
Imaginemos
um Sherlock Holmes progressista, e logo concordaremos que trabalho de
polícia é bobagem. Ao se deparar com o corpo de um gay, o detetive sabe
quem é o autor do crime: a Dona Homofobia Estrutural. Se o corpo for de
um negro, quem matou foi o Seu Racismo Estrutural. Caso o corpo fosse de
uma mulher, aí a coisa se complicava um pouco, pois se trata de
“feminicídio”, cuja culpa é sempre de algum homem particular. Eu achava
que o Seu Machismo Estrutural não constasse na lista de suspeitos do
Sherlock progressista. Mas agora vemos que consta, sim: quando um homem
se mata, a culpa é do Seu Machismo Estrutural. Como se vê, a família
Estrutural é cheia de serial killers, todos muito conhecidos pelo
detetive progressista.
Vamos
à matéria: apresenta-se como uma curiosidade especialíssima o fato de
82% dos suicídios registrados na Bahia serem de homens. Ora, qualquer um
que dê uma olhadela no tema do suicídio sabe que a maioria dos suicidas
é composta por homens; assim, de admirar seria se a Bahia tivesse uns
50% de suicidas homens. A matéria segue então o curso natural, que é
relatar o fato geral, que mostra que a Bahia está dentro do esperado.
Pois bem: e por que a maioria dos suicidas é tipicamente homem? “Mas
esse está longe de ser um retrato só da Bahia. Em 2019, a Organização
Pan-Americana de Saúde (Opas) divulgou um relatório sobre como a
masculinidade tóxica influenciava a saúde dos homens nas Américas. Pelas
construções sociais sobre a masculinidade, a expectativa de vida dos
homens em todo o continente americano chegava a ser 5,8 anos menor do
que as mulheres. Assim, um em cada cinco homens morre antes dos 50
anos.”
Busca pela vagueza
Não
só apareceu a tal toxina da masculinidade para matar os homens, como
ainda se lançou o suicídio num bolo de causas da redução da expectativa
de vida masculina nas Américas. Nas Américas há guerrilha de facções
narcotraficantes. Será que isso não tem nada a ver com a queda da
expectativa de vida dos homens? Homens são mais propensos a morrer de
ataque cardíaco do que mulheres, será que isso também não explica algo?
No Brasil patriarcal açucareiro descrito por Freyre, as mulheres viviam
menos do que os homens por causa das mortes de parto. Como explicar isso
sob a chave da masculinidade tóxica? Os homens viviam mais do que as
mulheres porque faziam transfusão da toxina para as esposas?
A
obviedade da diversidade das causas é reconhecida pela matéria: “O
documento citava o suicídio, ao lado de outras causas, como homicídios,
vícios e acidentes de trânsito, como uma das principais razões para
isso.”
Ao
que parece, a busca pela vagueza se tornou método científico. Na época
do racismo científico, os estudiosos dessa corrente olhavam para a
população brasileira pobre, subnutrida e doente, e apontavam o fato de
serem mestiços. Pronto: estava encontrada a causa. Se Carlos Chagas
pensasse do mesmo jeito, nunca descobriria que alguns mestiços morrem
com o coração inchado. Tem mestiço que morre de coração inchado, que
morre de facada no bucho, que morre de tísica, que se suicida. Por que
morrem? Mestiçagem estrutural. Mestiçagem tóxica. É ridículo, mil vezes
ridículo. Justamente por ter índole de cientista, Carlos Chagas isolou o
problema que ele queria averiguar – o coração inchado – e descobriu uma
causa nada vaga e muito específica para o problema.
Resolver os próprios problemas
O
Correio ouviu uma suicidóloga da Secretaria de Saúde da Bahia, a qual
contou a sua própria história ao mesmo tempo em que apresentou as causas
da prevalência de homens entre os suicidas.
Era
uma vez um homem com transtorno bipolar que se recusava a ir a
psiquiatras. Esse homem tem um segundo casamento e filhos desse segundo
casamento. Diz que prefere assassinar a família a vê-la passar
necessidades. Quando aparecem problemas financeiros, assassina mulher e
filhos antes de se matar. A filha mais velha, do casamento anterior, é a
suicidóloga ouvida.
“Ele
não tinha buscado ajuda psicológica ou psiquiátrica. Acreditava que os
medicamentos prescritos pelo cardiologista, um amigo da família, seriam
suficientes para qualquer coisa - ainda que o profissional o
encaminhasse para a psiquiatria. Mas ele nunca aceitava.” Será que é
porque doenças psiquiátricas são um estigma? Não, é por causa do
patriarcado: “Sob a capa machista do patriarcado que não pode falhar,
não pode deixar de sustentar ou de prover, ele sucumbiu à doença. […] A
masculinidade tóxica, na verdade, assassina a saúde mental do homem.”
O Seu Racismo Estrutural volta
A
matéria ouve mais autoridades e as opiniões são de deixar o cabelo em
pé. Uma delas diz: “ ‘Outra população para se considerar é a população
negra, que passa a vida sofrendo o racismo estrutural. Já os homens
sofrem também porque o discurso capitalista nos impõe que a gente não
pode fracassar, nem errar. Tem que ser macho’ afirma a psicóloga Soraya
Carvalho, coordenadora do Neps [Núcleo de Estudo e Prevenção do
Suicídio, vinculado à Secretaria de Saúde da Bahia].” Agora pronto: os
homens se matam por causa do patriarcado e do capitalismo. Melhorar a
saúde mental dos homens, só depois da Revolução Comunista. E a gente
paga para ter especialista em saúde mental cuidando da população assim.
Eu juro para o leitor que me torno, cada vez mais, uma defensora de
banho de pipoca. Se temos psicólogos desses, é melhor demitir tudo e
botar pai de santo dando banho de pipoca. Mal, não faz. E ainda é
afrocentrado.
O
caráter simplório desses “estudiosos” é revoltante. Se o Racismo
Estrutural mata, então é causa do suicídio de negros. A psicóloga sequer
se dá ao trabalho de questionar se os negros se suicidam mais do que os
brancos, porque se é negro, o Racismo Estrutural matou e pronto. Mas a
verdade é que o perfil epidemiológico mais completo dos suicidas
brasileiros coloca os brancos à frente dos “negros”. Aspas, porque o
documento segue uma maracutaia estatística que consiste em considerar
que “negro” significa o somatório de pretos e pardos. Entre 2011 e 2015,
a taxa de homens suicidas a cada 100.000 habitantes, dividida por cor,
era: 9,5 para os brancos, 7,6 para pretos + pardos e 3,8 para amarelos.
(Os homens indígenas têm, de longe, a taxa mais alta: 23,1.) Entre as
mulheres, o “pódio” do suicídio segue a mesma ordem, embora a
mortalidade seja maior.
Ao
menos o boletim epidemiológico botava a Bahia entre os estados com
menos suicídios por 100.000 habitantes. Acho mais fácil atribuir isso ao
banho de pipoca do que à Secretaria de Estado de Saúde da Bahia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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