Como na Idade Média, essa classe de pessoas adora acusar pessoas, linchá-las e destruir suas carreiras. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
Em 1º de junho de 1310, a beguina francesa Marguerite Porete
foi queimada em Paris como herege. Seu livro “Miroir des Âmes Simples”,
publicado em português como “O Espelho das Almas Simples” pela editora
Vozes, é parte de uma tradição de textos místicos dos séculos 13 e 14
que narram experiências de contato direto com Deus.
A
Inquisição tinha razão em condená-la? Em 1313, em Viena, o documento de
condenação das beguinas —termo que designava mulheres que eram
religiosas, mas não freiras oficialmente— as acusava de um erro
teológico crasso: a confusão de substâncias.
Antes
de examinar o suposto erro de Marguerite Porete, e antes que as gralhas
comecem a gritar, deixemos claro que homens também foram condenados
pela Inquisição no mesmo período. Entre eles, um dominicano muito
famoso, o filósofo alemão Eckhart de Hochheim, conhecido como Mestre
Eckhart. Quando sua condenação foi oficializada, em março de 1329, ele
já estava morto há quase um ano.
É
bem possível que Eckhart tenha sido influenciado por Porete, já que
quando a beguina foi julgada e presa em Paris, entre 1308 e 1310, ela
ficou presa na casa em que o inquisidor viria a morar cerca de dois anos
depois. Quem lê os escritos de Porete e de Eckhart vê a semelhança
entre os dois.
A
mística renana, assim conhecida por estar associada à região do rio
Reno, que atravessa a Europa, tinha mesmo ares heréticos. Os erros de
Eckhart são próximos daqueles cometidos por Porete.
A
pergunta que não quer calar é: o fato de Porete ser uma mulher ajudou a
condená-la? Provavelmente sim. Mesmo que outras mulheres que escreveram
ideias iguais às dela, mas que eram de berços nobres, tenham escapado
da fogueira. É o caso da famosa Hadewijch de Antuérpia, ativa por volta
de 1250, integrante da poderosa família de Brabant, conhecida pelo
aristotélico latino Siger de Brabant, que já tivera problemas com a
Inquisição no século 13.
Assim
como hoje, quando qualquer homem que for acusado de assédio por uma
mulher dificilmente conseguirá escapar do linchamento público por se
considerar que todo homem é um estuprador estrutural, na época muita
gente achava que toda mulher era demoníaca por natureza. Entendeu? “Por
natureza” aqui e “estrutural” ali são sinônimos.
Bem, afinal, os inquisidores tinham razão ou não?
Antes,
mais um detalhe. (Cultive a virtude da paciência, tão importante,
principalmente, em tempos ridículos como os nossos.) Quem eram esses
inquisidores? De cara, muitos eram dominicanos.
Mas por trás do hábito de dominicano, que tipo de pessoa eram esses inquisidores?
Eram
homens cultos. Dominicanos eram parte da elite intelectual da época,
basta lembrar do próprio Eckhart ou do antecessor dele, São Tomás de
Aquino, entre tantos outros.
Hoje,
esses inquisidores seriam jovens procuradores do Estado, magistrados,
acadêmicos, jornalistas, editores de livros, intelectuais em geral.
Ainda hoje, como sabemos, essa classe de pessoas adora acusar pessoas, linchá-las e destruir suas carreiras.
Nada
de estranho. Já na Idade Média, os acusadores eram da elite
intelectual. Quem jogava ovo podre era o povo —hoje seriam os “haters” e
militantes nas redes sociais—, mas quem controlava os meios de produção
da condenação era a elite, que dominava a linguagem, as teorias, a
divulgação dos documentos, enfim, o poder da letra em geral.
Mas,
finalmente, os inquisidores tinham razão? Difícil dizer pois há que se
levantar questões de contexto. Eu posso entender que tanto Porete como
Eckhart erraram por pregar teses contrárias ao entendimento oficial da
teologia de então, e ainda assim considerar que a fogueira era
excessiva.
Confusão
de substâncias é afirmar que nós criaturas temos algo em nós que é
feito da mesma “matéria” de que é feita Deus. E segundo a Igreja, Deus
nos criou do nada e nós não temos nenhum parentesco com Ele.
Os
místicos renanos entendiam que no clímax da experiência direta com
Deus, descobríamos que em nós havia uma centelha divina, e, neste nível,
não havia mais diferença entre nós e Deus.
Nas palavras de Porete, quando sentimos o amor puro de Deus, vemos que em nós nada há de matéria de criatura.
Enfim, o gosto por queimar livros e autores ainda nos habita, não?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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