Se soubéssemos antecipadamente quais seriam seus resultados, não precisaríamos da liberdade. Ensaio de Friedrich A. Hayek, publicado pelo Instituto Mises:
Nota do IMB
Alguns consideram que o melhor ensaio de Hayek, que hoje completaria 122 anos de idade (08 de agosto), seja O uso do conhecimento na sociedade,
no qual ele explica detalhadamente a importância do sistema de preços:
são os preços que transmitem todas as informações detalhadas que
diferentes pessoas ao redor do mundo possuem sobre aspectos específicos
de vários mercados.
Em termos puramente econômicos, realmente aquele é o melhor artigo.
Entretanto, o texto abaixo, um excerto de seu gigantesco livro A Constituição da Liberdade, é definitivamente o seu mais impressionante.
Seu
tamanho relativamente curto (para um ensaio) esconde sua grande
profundidade e sua incrível sagacidade. Você pode lê-lo várias vezes — a
cada releitura, descobrirá algo novo.
Hayek
apresenta seu argumento contra os controles e as regulações estatais — e
apresenta também sua constatação sobre como o conhecimento é
disseminado e utilizado na sociedade — da forma mais completa e profunda
possível. Ele apresenta argumentos que fazem você interromper sua
leitura, pensar e repensar.
Por
exemplo, ele argumenta que, se já soubéssemos antecipadamente todos os
resultados que surgiriam em um ambiente de liberdade, não precisaríamos
da liberdade: apenas implementaríamos diretamente todos esses
resultados.
Ele
também explica que todo o propósito da liberdade é exatamente o de
descobrir, no futuro, tudo aquilo que ainda não sabemos no presente.
Sendo assim, o argumento em prol da liberdade é, em última instância,
baseado na humildade e no respeito pela sabedoria e pela experiência
humana futura.
Eis
um ensaio profundamente brilhante, o qual, sem exageros, fará diferença
em como você encara o mundo e como você viverá o resto de sua vida.
***
O
argumento em prol da liberdade individual fundamenta-se,
principalmente, no humilde reconhecimento de que somos ignorantes. A
realização dos nossos objetivos e do nosso bem-estar depende de uma
série de fatores sobre os quais somos inevitavelmente ignorantes.
Se
existissem indivíduos oniscientes, se pudéssemos conhecer não apenas
tudo o que influi na realização dos nossos desejos atuais, mas também
conhecer nossos desejos e necessidades futuras, não haveria muita razão
para defendermos a liberdade.
Por outro lado, a liberdade do indivíduo tornaria, evidentemente, impossível uma previsão perfeita.
A
liberdade é essencial para que o imprevisível exista; nós a desejamos
porque aprendemos a esperar dela a oportunidade de realizar a maioria
dos nossos objetivos. E, justamente porque o indivíduo sabe tão pouco e,
mais ainda, como raramente podemos determinar quem de nós conhece mais,
confiamos aos esforços independentes e competitivos de muitos a criação
daquilo que desejaremos, quando tivermos a oportunidade de apreciá-lo.
Por
mais humilhante que seja para o orgulho humano, devemos reconhecer que o
progresso e até a preservação da civilização dependem de um máximo de
oportunidades para que o imprevisível possa acontecer. Estas
casualidades ocorrem graças à combinação de conhecimentos e atitudes,
aptidões e hábitos adquiridos pelos indivíduos, e também quando
indivíduos treinados se defrontam com problemas específicos que estão
preparados para solucionar.
Nosso
inevitável desconhecimento de tantas coisas significa que teremos de
lidar, em grande parte, com probabilidades e acasos. Naturalmente, tanto
na vida social quanto na individual, os acidentes favoráveis não
ocorrem simplesmente. Devemos estar preparados para quando acontecerem.
Mas,
mesmo assim, ainda são acasos, e não se transformam em certezas.
Envolvem riscos deliberadamente aceitos, possíveis reveses de indivíduos
e grupos que têm tanto mérito quanto outros que prosperam,
possibilidade de fracassos ou de recaídas, até para a maioria, e apenas
uma probabilidade de ganhos líquidos no cômputo geral.
O
máximo que podemos fazer é aumentar as possibilidades de que certa
combinação de dons individuais e de circunstâncias leve à criação de
algum novo instrumento ou ao aperfeiçoamento de um instrumento antigo e
melhorar a perspectiva de que tais inovações se tornem rapidamente
conhecidas por aqueles que podem beneficiar-se delas.
Seres imperfeitos
Todas
as teorias políticas pressupõem, evidentemente, que a maioria dos
indivíduos é muito ignorante. Aqueles que defendem a liberdade se
diferem dos outros porque incluem na categoria de ignorantes eles
próprios e também os mais sábios. Comparada com a totalidade do
conhecimento que é continuamente utilizado no processo evolutivo de uma
civilização dinâmica, a diferença que existe entre o conhecimento dos
mais sábios e aquele que pode ser deliberadamente empregado pelos mais
ignorantes é insignificante.
Embora
não percebamos habitualmente, todas as instituições da liberdade
constituem de adaptações a esta fundamental constatação da ignorância,
adaptadas para lidar com possibilidades e probabilidades, mas não com a
certeza. Não existe certeza na ação humana e é por esta razão que, para
fazer o melhor uso do nosso conhecimento individual, devemos seguir as
normas indicadas pela experiência como as mais adequadas de um modo
geral, embora não saibamos quais serão as conseqüências de sua
observância em casos específicos.
O
homem aprende pela frustração de suas esperanças. É óbvio que não
devemos aumentar a imprevisibilidade dos acontecimentos com a criação de
tolas instituições humanas. Na medida do possível, deveríamos ter como
objetivo a melhoria das instituições humanas, a fim de aumentar as
possibilidades de previsão correta. Todavia, acima de tudo, deveríamos
proporcionar o máximo de oportunidades para que indivíduos que não
conhecemos aprendessem fatos que nós mesmos ainda desconhecemos e
utilizassem este conhecimento em suas ações.
E
é graças aos esforços harmônicos de muitas pessoas que se pode utilizar
uma quantidade de conhecimento maior do que aquela que um indivíduo
isolado pode acumular ou do que seria possível sintetizar
intelectualmente. E graças a essa utilização do conhecimento disperso é
que se tornam possíveis realizações superiores às que uma mente isolada
poderia prever.
É
justamente porque liberdade significa renúncia ao controle direto dos
esforços individuais que uma sociedade livre pode fazer uso de um volume
muito maior de conhecimentos do que aquele que a mente do mais sábio
governante poderia abranger.
As chances de erro
A
partir destas premissas básicas sobre as quais se fundamenta a
justificativa da liberdade, segue-se que não poderemos alcançar suas
metas se limitarmos o uso da liberdade apenas àquelas circunstâncias
especiais nas quais sabemos que ela será benéfica. Não é liberdade
aquela concedida somente quando seus efeitos benéficos são conhecidos de
antemão.
Se
soubéssemos de que forma a liberdade seria usada, não teríamos
necessidade de justificá-la. Nunca conseguiremos os benefícios da
liberdade, nunca alcançaremos os avanços imprevisíveis que ela
possibilita, se ela não for também concedida nos casos em que sua
utilização parecer indesejável.
Portanto,
não se pode alegar como argumento contra a liberdade individual que as
pessoas frequentemente abusam dessa liberdade. Liberdade significa,
necessariamente, que cada um acabará agindo de uma forma que poderá
desagradar aos outros.
Nossa
fé na liberdade não se baseia nos resultados previsíveis em
determinadas circunstâncias, mas na convicção de que ela acabará
liberando mais forças para o bem do que para o mal.
Segue-se,
também, que a importância de termos liberdade de ação não está de modo
algum relacionada com a perspectiva de nós, ou a maioria, estarmos,
algum dia, em condições de utilizar tal possibilidade. Conceder apenas o
grau de liberdade que todos têm a possibilidade de exercer significaria
interpretar sua função de modo totalmente errado.
Por
esse raciocínio errôneo, a liberdade utilizada apenas por um homem
entre um milhão pode ser mais importante para a sociedade e mais
benéfica para a maioria do que qualquer grau de liberdade que todos nós
poderíamos desfrutar. Poder-se-ia dizer até que, quanto menor a
oportunidade de se fazer uso da liberdade para determinado fim, mais
preciosa ela será para a sociedade como um todo. Quanto menor a
oportunidade, tanto mais grave será perdê-la quando surgir, pois a
experiência que oferece será quase única.
Por
outro lado, é provavelmente correto dizer que a maioria não se
interessa diretamente senão por uma parcela mínima das coisas
importantes que uma pessoa deveria ter liberdade de fazer. A liberdade é
tão importante justamente porque não sabemos como os indivíduos a
usarão. Se não fosse assim, também seria possível chegar aos resultados
da liberdade se a maioria decidisse o que os indivíduos deveriam fazer.
Mas a ação da maioria está necessariamente restrita ao que já foi
testado e averiguado, a questões que já obtiveram o consenso no processo
de análise que deve ser precedido por diferentes experiências e ações
de indivíduos diferentes.
Liberdade para o desconhecido
Os
benefícios que a liberdade me concede são, assim, em grande parte, o
resultado do uso que outros fazem dela e, principalmente, dos usos dos
quais eu nunca me poderia valer. Por isso, o mais importante para mim
não é necessariamente a liberdade que eu próprio posso exercer. É muito
mais importante que alguém possa experimentar tudo do que a
possibilidade de todos fazerem as mesmas coisas.
Não
é porque gostamos de poder fazer determinadas coisas, nem porque
consideramos algum tipo de liberdade essencial à nossa felicidade, que
temos direito à liberdade. O instinto que nos faz reagir contra qualquer
restrição física, embora seja um aliado útil, nem sempre representa
padrão seguro para justificar ou delimitar a liberdade. O importante não
é o tipo de liberdade que eu próprio gostaria de exercer e sim o tipo
de liberdade de que alguém pode necessitar para beneficiar a sociedade.
Só poderemos assegurar essa liberdade a uma pessoa desconhecida se a
conferirmos a todos.
Os
benefícios da liberdade não são, portanto, limitados aos homens livres —
ou, pelo menos, um homem não se beneficia apenas daqueles aspectos da
liberdade dos quais ele próprio tira vantagem. Não há dúvida de que, ao
longo da história, maiorias não-livres se beneficiaram com a existência
de minorias livres, e as sociedades não-livres de hoje se beneficiam
daquilo que podem obter e aprender de sociedades livres.
Evidentemente,
os benefícios que obtemos com a liberdade de outros tornam-se maiores
na medida em que cresce o número daqueles que podem exercer a liberdade.
A
tese que justifica a liberdade para alguns aplica-se, portanto, à
liberdade para todos. Mas é ainda melhor para todos que alguns sejam
livres do que ninguém; e, também, bem melhor que muitos possam gozar de
plena liberdade do que todos terem uma liberdade restrita.
O
mais significativo é que a importância da liberdade de agir de
determinada maneira nada tem com o número de pessoas que querem agir
assim: a proporção poderia ser inversa. Uma consequência disto é que uma
sociedade pode ser tolhida por controles, embora a grande maioria possa
não se dar conta de que a sua liberdade foi restringida de forma
considerável. Se agíssemos a partir do pressuposto de que só é
importante o uso que a maioria venha a fazer da liberdade, estaríamos
criando uma sociedade estagnada com todas as características da falta de
liberdade.
A natureza das mudanças
As
inovações imprevistas que aparecem constantemente ao longo do processo
de adaptação consistirão, primeiramente, em novos arranjos ou modelos,
em que se encontram coordenados os esforços de diferentes indivíduos, e
em novas organizações para o uso de recursos, por natureza tão
passageiras quanto as condições específicas que permitiram seu
aparecimento.
Haverá,
em segundo lugar, modificações de instrumentos e de instituições,
adaptadas às novas circunstâncias. Algumas delas serão também meras
adaptações temporárias às condições do momento, enquanto outras
constituirão melhoramentos que, por aumentar a versatilidade dos
instrumentos e hábitos existentes, serão mantidos.
Estes
últimos representarão uma adaptação melhor, não apenas às
circunstâncias específicas de tempo e espaço, mas a uma característica
permanente do nosso meio. Nestas "formações" espontâneas está
incorporada uma percepção das leis gerais que governam a natureza. Esta
incorporação cumulativa da experiência em instrumentos e formas de ação
permitirá uma evolução do conhecimento explícito, de normas genéricas
expressas que podem ser transmitidas pela linguagem de uma pessoa a
outra.
Este
processo de surgimento do novo pode ser mais bem entendido na esfera
intelectual quando seu resultado são idéias novas. Neste campo, a
maioria de nós percebe pelo menos alguns estágios individuais do
processo; sabe necessariamente o que está ocorrendo e, por esta razão,
em geral, reconhece a necessidade de liberdade. A maioria dos cientistas
compreende que não podemos planejar o avanço do conhecimento, que na
busca rumo ao desconhecido — e é isso que constitui a pesquisa —
dependemos, em grande parte, dos caprichos dos gênios e das
circunstâncias, e que o avanço científico, assim como uma idéia nova que
surge na mente de um indivíduo, será a consequência de uma combinação
de conceitos, hábitos e circunstâncias que a sociedade proporciona a um
indivíduo, resultando tanto de acasos felizes quanto de um esforço
sistemático.
Como
percebemos mais facilmente que nossos avanços na esfera intelectual
muitas vezes são fruto do imprevisto e do não-planejado, somos levados a
exagerar a importância da liberdade de pensamento e a ignorar a
importância da liberdade de ação. Mas a liberdade de pesquisa e de
opinião e a liberdade de expressão e discussão, cuja importância é
plenamente compreendida, são significativas somente no último estágio do
processo de descoberta de novas verdades.
Enaltecer
o valor da liberdade intelectual, em detrimento do valor da liberdade
de ação, equivaleria a tomar o topo de um edifício como o todo. Novas
idéias devem ser discutidas, diferentes pontos ajustados, pois estas
idéias e pontos de vista surgem dos esforços, em circunstâncias sempre
novas, de indivíduos que se valem, em suas tarefas concretas, dos novos
instrumentos e formas de ação que eles assimilaram.
A complexidade do progresso
O
aspecto não intelectual deste processo — a formação do ambiente
material modificado, no qual o novo emerge — exige, para a sua
compreensão e apreciação, um esforço de imaginação bem maior do que os
fatores destacados pela perspectiva intelectualista.
Embora
às vezes possamos identificar os processos intelectuais que conduziram a
uma idéia nova, provavelmente nunca poderíamos reconstituir a sequência
e a combinação das contribuições que não levaram à aquisição do
conhecimento explícito; provavelmente nunca poderíamos reconstituir os
hábitos adequados e as aptidões que foram empregadas, os meios e as
oportunidades utilizadas e o ambiente peculiar dos atores principais que
permitiram aquele resultado.
As
nossas tentativas de compreender essa parte do processo não podem ir
além de mostrar, em modelos simplificados, as forças que nele operam e
de indicar o princípio geral e não o caráter específico das influências
que atuam no caso. Os homens sempre se preocupam apenas com o que sabem.
Portanto, as características que, durante o processo, não são
conhecidas ao nível da consciência costumam ser ignoradas e
provavelmente nunca podem ser identificadas em detalhe.
Na
realidade, estas características inconscientes, além de geralmente
desprezadas, muitas vezes são consideradas um obstáculo e não uma
contribuição ou uma condição essencial. Por não serem "racionais", no
sentido de serem utilizadas em nosso raciocínio, frequentemente são
consideradas irracionais, contrárias à ação inteligente.
Todavia,
embora a maior parte dos elementos não-racionais que afetam nossa ação
possa ser irracional neste sentido, a maioria dos "meros hábitos" e
"instituições sem sentido", que usamos e pressupomos em nossas ações,
representa condições essenciais para a realização de nossos objetivos,
constituindo formas de adaptação da sociedade que já demonstraram sua
eficácia e utilidade, que estão sendo constantemente aperfeiçoadas e das
quais depende a dimensão daquilo que podemos realizar. Embora seja
importante descobrir suas falhas, nem por um momento poderíamos ir em
frente sem confiar nelas constantemente.
A
maneira pela qual aprendemos a organizar nosso dia, a nos vestir, a
comer, a arrumar nossas casas, a falar, a escrever e a utilizar outros
incontáveis instrumentos e implementos da civilização, sem esquecer a
experiência prática (o know-how) da produção e do comércio, dá-nos
constantemente os fundamentos nos quais se devem basear nossas próprias
contribuições ao processo de civilização.
E,
no novo uso e aperfeiçoamento dos instrumentos que nos são oferecidos
pela civilização, surgem as novas idéias que serão empregadas finalmente
na esfera intelectual.
Embora
o uso consciente do pensamento abstrato, uma vez iniciado, tenha até
certo ponto uma vida própria, não poderia perdurar e desenvolver-se por
muito tempo sem os desafios constantes que se apresentam, pois os
indivíduos são capazes de agir de uma maneira nova, de experimentar
outras maneiras de fazer as coisas e de mudar toda a estrutura da
civilização, na tentativa de se adaptar à mudança.
O
processo intelectual é, com efeito, apenas um processo de elaboração,
seleção e eliminação de idéias já formadas. E o fluxo de novas idéias
nasce, em grande parte, da esfera na qual a ação, muitas vezes não
racional, e acontecimentos materiais se influenciam reciprocamente.
Este fluxo estancaria se a liberdade fosse confinada à esfera
intelectual.
A
importância da liberdade, portanto, não depende do caráter elevado das
atividades que ela torna possíveis. A liberdade de ação, mesmo nas
coisas simples, é tão importante quanto a liberdade de pensamento.
Tornou-se um senso comum desmerecer a liberdade de ação apelidando-a de
"liberdade econômica". Mas o conceito de liberdade de ação é muito mais
amplo do que o de liberdade econômica (o qual ela engloba).
E,
o que é mais importante, é extremamente duvidoso que haja ações que
possam ser consideradas meramente "econômicas" e que as restrições à
liberdade possam ficar limitadas aos chamados aspectos "econômicos".
Considerações
econômicas são apenas aquelas pelas quais conciliamos e ajustamos
nossos diferentes objetivos, nenhum dos quais, em última análise, é
econômico (exceto os do avarento ou do homem para o qual ganhar dinheiro
se tornou um fim em si mesmo).
Os objetivos são abertos
O
que dissemos até agora se aplica, em grande parte, não apenas ao uso
dos meios para a realização dos objetivos individuais, mas também a
estes mesmos objetivos.
Uma
sociedade é livre, entre outras razões, porque as aspirações dos
indivíduos não são limitadas, uma vez que o esforço consciente de alguns
indivíduos pode gerar novos objetivos, que posteriormente serão
adotados pela maioria. Devemos reconhecer que mesmo o que agora
consideramos bom ou bonito pode mudar — se não de uma forma perceptível
que nos permita adotar uma posição relativista, pelo menos no sentido de
que, em muitos aspectos, não sabemos o que será bom ou bonito para
outra geração.
Também
não sabemos por que consideramos isto ou aquilo bom, nem quem está com a
razão quando há divergência acerca do que é bom ou não. Não somente em
termos do seu conhecimento, mas também em termos dos seus objetivos e
valores, o homem é um produto da civilização; em última análise, é a
importância destas aspirações individuais para a perpetuação do grupo ou
da espécie que determinará se persistirão ou mudarão.
Evidentemente,
é um erro acreditar que podemos tirar conclusões acerca da qualidade
dos nossos valores apenas porque compreendemos que são produto da
evolução. Mas dificilmente poderíamos duvidar que estes valores são
criados e alterados pelas mesmas forças evolutivas que produziram nossa
inteligência. Podemos apenas saber que a decisão final a respeito do que
é bom ou ruim não caberá à sabedoria de indivíduos, mas à decadência
dos grupos que adotaram idéias "erradas".
Medidas de sucesso
É
na busca dos objetivos a que o homem se propõe em determinado momento
que podemos comprovar se os instrumentos da civilização são adequados;
os ineficazes serão abandonados e os eficientes mantidos. Mas não se
trata apenas do fato de que, com a satisfação de necessidades antigas e
com o aparecimento de novas oportunidades, surgem constantemente novas
finalidades. O sucesso e a perpetuação deste ou daquele indivíduo ou
grupo dependem tanto dos objetivos por eles perseguidos, dos valores que
governam suas ações, como dos instrumentos e da capacidade de que
dispõem.
A
prosperidade ou extinção de um grupo dependerá tanto do código de ética
ao qual obedece, ou dos ideais de beleza e felicidade a que se atém,
como do grau em que aprendeu, ou não, a satisfazer suas necessidades
materiais.
Em
qualquer sociedade, certos grupos podem ascender ou declinar de acordo
com as metas que perseguem e os padrões de conduta que observam. E as
metas do grupo que teve êxito tenderão a ser adotadas pelos demais
membros da sociedade.
Na
melhor das hipóteses, podemos entender somente em parte a razão pela
qual os valores que defendemos ou as normas éticas que observamos
contribuem para a perpetuação da nossa sociedade. E nem podemos ter
certeza de que, em condições de mudança constante, todas as normas que,
comprovadamente, contribuem para a consecução de um determinado fim
continuarão desempenhando esta função.
Embora
se costume supor que todo padrão social estabelecido contribui, de
certa forma, para preservar a civilização, o único meio de confirmá-lo
será averiguar se, concorrendo com os padrões adotados por outros grupos
ou indivíduos, ele continua a se mostrar adequado.
A concorrência permite alternativas
A
concorrência, na qual se baseia o processo de seleção, deve ser
entendida no seu mais amplo sentido. Ela implica não apenas a
concorrência entre indivíduos como também a concorrência entre grupos
organizados e não organizados. Encará-la como algo que se contrapõe a
cooperação ou a organização seria interpretar incorretamente sua
natureza.
O
esforço para conseguir certos resultados mediante a cooperação e a
organização é tão inerente à concorrência quanto os esforços
individuais. A distinção relevante não está entre a ação individual e a
ação de grupo mas, por um lado, entre as condições em que seja possível
experimentar alternativas, baseadas em diferentes pontos de vista ou
métodos, e, por outro lado, as condições nas quais um organismo detém o
direito exclusivo e o poder de impedir que outros participem.
Somente
quando tais direitos exclusivos são conferidos na pressuposição de que
certos indivíduos ou grupos possuem conhecimento superior, o processo
deixa de ser experimental e as convicções que prevalecem em dado momento
podem tornar-se um obstáculo ao progresso do conhecimento.
Defender
a liberdade não significa opor-se à organização — que constitui um dos
meios mais poderosos que a razão humana pode empregar —, mas opor-se a
toda organização exclusivista, privilegiada ou monopolística, ao emprego
da coerção para impedir que outros tentem apresentar melhores soluções.
Toda
organização baseia-se em certos conhecimentos; organização significa
dedicação a um objetivo específico e a métodos específicos, mas até a
organização destinada a aumentar o conhecimento só será eficiente na
medida em que o conhecimento e as convicções nas quais seu plano se
baseia forem verdadeiros.
E,
se qualquer fato vier a contradizer as convicções nas quais está
alicerçada a estrutura da organização, isto só se tornará evidente se
ela fracassar e for suplantada por outro tipo de organização. A
organização, por este motivo, poderá ser benéfica e eficiente enquanto
for voluntária e se der em uma esfera livre, e terá de se ajustar a
circunstâncias que não foram consideradas em sua concepção, ou então
fracassar.
Transformar
toda a sociedade em uma única organização, criada e dirigida conforme
um único plano, equivaleria a extinguir as próprias forças que formaram
as mentes humanas que a planejaram.
Vale
a pena parar por um momento e analisar o que aconteceria se fosse
empregado em todas as ações somente aquilo que o consenso geral
considerasse o conhecimento mais avançado. Se fossem proibidas todas as
tentativas que parecessem supérfluas à luz do conhecimento aceito pela
maioria, e se se indagasse apenas a respeito das coisas consideradas
significativas pela opinião dominante ou se realizassem apenas as
experiências ditadas por esta opinião, a humanidade chegaria talvez a um
ponto em que seu conhecimento permitiria prever as consequências de
todas as ações comuns e evitar todas as desilusões ou fracassos.
Então,
aparentemente, o homem teria sujeitado seu ambiente à sua razão, pois
somente empreenderia aquelas tarefas cujos resultados fossem totalmente
previsíveis. Poderíamos imaginar que a civilização teria deixado de
evoluir, não por se terem esgotado as possibilidades de um crescimento
futuro, mas porque o homem teria conseguido sujeitar tão completamente
todas as suas ações e o meio ambiente imediato ao seu nível de
conhecimento, que novos conhecimentos não teriam qualquer oportunidade
de surgir.
O
racionalista que deseja sujeitar tudo à razão humana encontra-se,
assim, diante de um verdadeiro dilema. O uso da razão visa ao controle e
à possibilidade de previsão. Mas o processo evolutivo da razão
baseia-se na liberdade e na imprevisibilidade da ação humana.
Aqueles
que exaltam os poderes da razão humana normalmente veem apenas um lado
da interação do pensamento e da conduta, na qual a razão atua na prática
e, ao mesmo tempo, é modificada por esta prática. Eles não percebem
que, para haver progresso, o processo social que possibilita a evolução
da razão deve permanecer livre do seu controle.
Congelando o processo
Resta
pouca dúvida de que o homem deve parte de seus maiores sucessos ao fato
de não ter sido capaz de controlar a vida social. Seu avanço contínuo
provavelmente dependerá de sua renúncia deliberada aos controles que
agora estão em seu poder.
No
passado, as forças evolutivas espontâneas, embora muito limitadas pela
coerção organizada do estado, ainda podiam afirmar-se contra este poder.
Dados os meios tecnológicos de controle hoje à disposição do governo,
talvez já não seja possível afirmar isso; de qualquer forma, em breve
poderá tornar-se impossível.
Não
estamos longe do momento em que as forças deliberadamente organizadas
da sociedade poderão destruir as forças espontâneas que tornaram
possível o progresso.
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