Retrato inacabado de Napoleão, por Jacques-Louiz David. |
Vistos à lupa e sem a propaganda de seus regimes, 'homens providenciais' como ele mais lembram os loucos de asilo. João Pereira Coutinho via FSP:
No dia em que o mundo comemorou os 200 anos da morte de Napoleão Bonaparte,
optei por ler Simon Leys e o seu “A Morte de Napoleão”. Já me tinham
avisado que era uma das mais brilhantes novelas da segunda metade do
século 20.
Resistia. Nem sempre grandes ensaístas dão bons ficcionistas —e Leys, pseudônimo do sinólogo Pierre Ryckmans, é um dos grandes ensaístas do nosso tempo.
Erro meu. “A Morte de Napoleão” é uma obra-prima de história alternativa —e uma meditação cruel sobre as ilusões do poder e da vaidade.
A premissa é notável: Napoleão, preso na ilha de Santa Helena,
é acordado no meio da noite para ser resgatado do seu cativeiro. No
lugar do velho imperador ficará um sósia, dos vários que existiam à
época.
Napoleão
embarca no navio salvífico, rumo à Europa —e, na cabeça dele, rumo à
restauração do seu poder. Ele só quer chegar a Paris, destronar uma vez
mais os Bourbon e reconquistar um continente que já foi dele.
O
barco chega à Europa. Napoleão chega a Paris, depois de passar
(ironicamente) pelos campos de Waterloo, convertidos em atração
turística com guias vestidos a rigor.
Mas
o seu sósia, na distante ilha de Santa Helena, acaba por morrer. As
notícias correm o mundo. Napoleão, o verdadeiro, não passa agora de um
homem comum, sem identidade, e abandonado pelos seus fiéis.
Não
fosse a gentileza de uma jovem vendedora de frutas, que o acolhe em
casa, o destino mais provável daquele homem seria o asilo dos lunáticos.
Onde já existem vários Napoleões que reclamam o título imperial só para
eles (uma vetusta tradição, como se vê).
Sim,
costuma dizer-se que todas as vidas políticas terminam em fracasso. Mas
Simon Leys não se limita ao fracasso; ele mostra o que há de patético
na tentativa humana, demasiado humana, de negar esse fracasso e de
procurar ainda retornar a uma glória perdida.
É
esse tipo de atitude que sempre me impressionou na nostalgia por
Napoleão, o grande “libertador dos povos”. Pergunto: será que em 2145
estaremos a comemorar os 200 anos da morte de Adolf Hitler?
Talvez
não: a Alemanha democrática que nasceu das cinzas fez um esforço brutal
para pintar o Terceiro Reich com as cores merecidas, as cores da
desumanidade e da infâmia.
O mesmo não se passou na França depois da morte de Napoleão, em 1821 e, sobretudo, depois da queda dos Bourbon, em 1830.
O
tirano foi elevado aos píncaros da grandeza nacional —e as críticas
contemporâneas, nos 200 anos da sua morte, só parecem preocupadas com o
fato de Napoleão ter sido um misógino (o seu Código Civil de 1804 não
tratava bem as mulheres) e um escravocrata (ao tentar reinstituir a
escravidão nas colônias depois de a Revolução Francesa a ter abolido).
Fatalmente, os países europeus que ele subjugou, ocupou, destruiu e pilhou têm outra opinião.
E,
para cada feito de Bonaparte —os seus códigos, as suas reformas, o seu
patrocínio das ciências e das artes—, há milhões de mortos pelo caminho.
Sem
esquecer o que me parece o maior legado das suas campanhas de
“libertação”: despertar o nacionalismo ressentido dos povos germânicos,
que no século seguinte daria frutos ainda mais sombrios.
Ler
Simon Leys é lembrar, para os mais esquecidos, que não existem “homens
providenciais” em política —e que esperar por eles é uma confissão de
imaturidade.
Vistos
à lupa, e sem a propaganda oficial dos seus regimes, os tais “homens
providenciais” lembram os loucos de um asilo, convencidos de que são
Napoleão.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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