O que Bolsonaro quer? Alastrar ainda mais a morte, num contexto de fome e desemprego? Artigo do professor Denis Rosenfield para o Estadão:
Apostar
na moderação do presidente Bolsonaro e sua equipe é mais arriscado que
apostar na loteria. As chances de sucesso são muito menores. Há uma
questão estrutural em jogo, a saber: a política tal como o bolsonarismo a
compreende está baseada na oposição amigo/inimigo, perpetuamente
repetida. A sua ação se volta para a eliminação do outro, qualquer que
seja, basta que seja definido como inimigo. Se é imaginário ou real, é
algo secundário, contanto que a movimentação política se paute por esse
parâmetro da ação.
Quem
é amigo ou inimigo, isso é igualmente objeto de definições flutuantes,
tudo depende das circunstâncias, dos humores presidenciais e da
instabilidade emocional de sua equipe mais direta de assessores. Não sem
razão, foi ela intitulada de “gabinete do ódio”, tendo em vista que a
destruição a orienta, num tipo de pulsão de morte que por tudo se
propaga. Para que opere, o inimigo deve sempre estar lá,
independentemente de quem ele o seja em determinado momento. Os
ex-ministros Gustavo Bebianno e Santos Cruz, entre outros, mostram a
volatilidade daqueles que passam a ser considerados alguém a ser
eliminado, e isso sem nenhuma consideração por amizades e afinidades
passadas.
Acontece,
agora, que esse tipo de concepção da política do ódio está inserida num
contexto de morte que se alastra por toda a sociedade, com a pandemia
dizimando vidas, alastrando a doença e piorando as condições econômicas e
sociais. É a política da morte potencializando uma morte pandêmica que
já ganha conotações políticas, porque o atual governo optou por não
combatê-la, menosprezando-a, considerando a covid-19 algo passageiro e
desprezível, uma “gripezinha”. Estamos rumando para meio milhão de
mortes, e não para 2 mil, como alguns de seus “assessores” previam.
Isso
se fez por omissões, não compra de vacinas nos momentos adequados,
falta de previsão, inobservância de cuidados sanitários como isolamento
social, uso de máscaras e álcool em gel, além do “receituário” de
“poções mágicas” como cloroquina e assemelhadas, em que foram gastos,
inutilmente, milhões de reais. Só se pode concluir que o Palácio do
Planalto está repleto de pesquisadores e doutores do mais alto gabarito e
competência! Os mortos agradecem...
A
CPI, entre outras virtudes, está trazendo novamente todos esses atos
irresponsáveis, diria até criminosos, à tona. Ela reatualiza o que o
governo gostaria que fosse relegado, passado, expondo o desgoverno
reinante. Achar que ela seria apenas repetitiva significa desconsiderar
seu efeito político, contínuo durante toda a sua vigência, podendo
estender-se por seis meses. Ela opera cumulativamente, fazendo a memória
coletiva encontrar uma explicação para o sofrimento dos brasileiros,
relembrando a incúria governamental.
A
morte do ator Paulo Gustavo por covid, por exemplo, termina
fortalecendo a CPI e sua repercussão ao estabelecer um nexo causal entre
o seu infortúnio e a irresponsabilidade presidencial. Eis por que as
redes sociais, ao repercutirem o decesso desse notável ator, puseram o
próprio presidente Bolsonaro em xeque. Mas a política do ódio pode ter
efeito bumerangue, quando a sociedade passa a ter consciência do valor
da vida, do diálogo e da pacificação das relações políticas.
A
política da morte não se preocupa com incoerências e contradições. Ao
contrário, delas se alimenta, porque a destruição desconhece limites,
incluídos os lógicos, os do cálculo. O presidente Bolsonaro ora diz uma
coisa, ora diz outra, ora avança, ora recua, seguindo apenas suas
estimativas e as de sua família e equipe do que é melhor para eles no
cenário almejado de reeleição. O Brasil, a vida, o bem-estar, a saúde, a
educação, o emprego, a fome não entram em suas considerações. Exigir
aqui racionalidade é pura perda de tempo. Enganam-se os políticos e
partidos que os apoiam achando que poderão corrigir esses “excessos”.
Eles são elementos constitutivos de suas ações. A narrativa do ódio não
deixa de ser coerente.
Nesse
sentido, o trabalho da CPI já começa a produzir os seus efeitos. Dentre
eles, assinale-se a importância que Bolsonaro e sua família e equipe
lhe estão atribuindo, mesmo que digam que ela nada significa. O seu
próprio dizer negativo mostra a sua valorização. Um dia destes, o
presidente afirmou, no seu cercadinho preferido, onde fanáticos
repercutem a suas falas destrutivas, entre os seus amigos ocasionais,
que os opositores da cloroquina são “canalhas” e a China está conduzindo
uma “guerra bacteriológica” ou algo similar.
Embora
tente o contrário, Bolsonaro exibe, aos gritos, a importância da CPI.
Ao reiterar a relevância “médica” da cloroquina, procura expor os
brasileiros ainda mais à doença e à morte, incentivando-a, ao mesmo
tempo que provoca o maior parceiro comercial, sanitário e médico do
País, para que nos retalie. Qual o seu objetivo? Reduzir a importação de
vacinas e dos seus insumos para a produção nacional? Alastrar ainda
mais a morte, num contexto de fome e desemprego?
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