A disputa entre o lulopetismo e o bolsonarismo pelo poder revela que o retrocesso democrático no país se liga a uma sequência de governos sem apreço pelas liberdades. Artigo de José Augusto Filho para o Observador:
Os
eventos do 31 de março de 1964 no Brasil parecem condenados a eterna
controvérsia. Volvidos 57 anos desde que os militares assumiram o poder,
as interpretações do episódio permanecem variadas. Resquício da Guerra
Fria, a componente ideológica continua a dominar análises e a distorcer
conclusões. Tal fenómeno repercute sobre o plano político-partidário,
onde interpretações do episódio costumam servir tanto de apologia aos
personagens da época como de bandeira aos atuais militantes. Em meio a
tantos interesses, a realidade dos fatos parece ser o menos importante.
Contudo,
apesar da polémica envolvente ao regime militar no Brasil (1964-1985),
uma verdade parece incontestável: naquele conturbado início de 1964, a
maior das vítimas foi a democracia liberal. Atacada à direita e à
esquerda, a população ou os políticos de então não lhe reconheciam
grande valor. Era ambiente oposto ao atual. Hoje, o apreço pela
democracia parece ter atingido o paroxismo. Sob essa ótica, o mero
retorno dos generais aos ministérios, ainda que para integrarem o
governo civil e eleito de Jair Bolsonaro, tem sido interpretado como uma
ameaça ao regime democrático.
Tal
leitura não é sem pedigree. O cientista político Yascha Mounk conclama
os brasileiros para a necessidade de lutarem pela sobrevivência da
democracia liberal. No prefácio à edição brasileira do seu livro O povo
contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como
salvá-la, ele escreve que “Bolsonaro é o adversário mais poderoso que a
democracia brasileira enfrenta em meio século”. Contudo, ao atribuir o
protagonismo antidemocrático ao atual presidente do Brasil, Mounk peca
ao subavaliar o legado perverso dos anteriores.
Os
cinco grandes campos mediadores que permitem a consolidação
democrática, conforme defendido pelo cientista político espanhol, Juan
J. Linz, já vinham sendo degradados pelo projeto de poder do Partido dos
Trabalhadores (PT). Elementos estruturantes da sociedade civil, da
sociedade política, do Estado de Direito, da máquina estatal e da
sociedade económica estavam sob forte ataque. O boom de commodities e a
descoberta de vastas reservas de petróleo deram a confiança necessária
visando metas ambiciosas. Desrespeitar normas que colocassem em risco a
nascente democracia não foi obstáculo para os pragmáticos petistas.
No
âmbito doméstico, o governo Lula da Silva era uma voraz máquina de
corrupção, que buscou alimentar-se de todo o tecido político, social e
económico brasileiro. Com o Estado a tudo tragar para dentro de si, sob
os governos do PT, a democracia brasileira caminhava a passos largos
para assumir uma forma gerenciada, ou soberana, conforme denominação
preferida pelo ideólogo do regime de Vladimir Putin. Trata-se daquela,
na qual o Estado é livre para definir as regras do jogo político e as
liberdades civis.
Em
política externa, a proximidade a lideranças autoritárias na América
Latina, África e Oriente Médio obedecia à estratégia de Lula da Silva de
moldar uma nova arquitetura financeira mundial. Seduzidos pela miragem
de poder que uma suposta ordem multipolar reservaria ao Brasil, na
qualidade de potência regional, os governos do PT ignoraram as violações
aos direitos humanos cometidas pelos novos aliados, como o Irão de
Mahmoud Ahmadinejad e a Venezuela de Hugo Chávez. Durante os seus
governos (2003-2016), o desrespeito pela democracia liberal jamais foi
obstáculo ao engajamento do Brasil no exterior.
Apeado
o PT do poder, aqueles que toleraram, quando não promoveram, a
corrupção da política e aproximação do Brasil a regimes autoritários,
agora posam de guardiões da democracia. Não cansam de denunciar que
Bolsonaro estaria preparando um autogolpe, visando implantar um regime
autoritário. Contudo, já não lhes resta muita credibilidade e suas reais
intenções são por demais patentes: sem projeto viável para resolver os
problemas que eles mesmos criaram, resta-lhes, como última cartada,
denunciar o risco de rutura institucional.
A
obsessão pelo golpe, no entanto, tem método. Experiências mundiais
demonstram a conveniência revolucionária de aproveitar momentos de
instabilidade para implantar regimes que invariavelmente desembocam em
supressão das liberdades e matança de opositores. No Brasil de hoje,
muitos daqueles que alardeiam palavras de ordem do tipo “ditadura nunca
mais”, candidamente denominam a ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela
de “democracia”.
É
verdade, Bolsonaro é um ex-militar tosco, que está longe de representar
a tradição das Forças Armadas do Brasil de fornecer quadros de alto
nível para as instituições do Estado. Da mesma forma, não é um democrata
convicto. A emular práticas do lulopetismo de aparelhamento da
estrutura burocrática estatal, o bolsonarismo é a versão à direita do
patrimonialismo que esteve na base dos governos do PT. O lema “liberal
na economia e conservador nos costumes” da época da campanha eleitoral
não resistiu às provocações do poder quando tomou posse do cargo. Na
prática, Bolsonaro governa sob os princípios do populismo do qual Lula
da Silva se mostrou exemplar.
Enquanto
ameaça à democracia, Bolsonaro difere pouco ou quase nada dos seus
opositores. O atual presidente não é a fonte da ruína das liberdades no
Brasil. Antes, pode ser considerado consequência do processo de
degradação das instituições democráticas perpetrado por seus
antecessores. A crise económica sem precedentes na história republicana
brasileira, combinada com a máquina de corrupção que operava em escala
massiva durante os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, produziu o
ambiente de conflagração que dividiu o país.
Abraçar
o discurso populista do atual presidente parece ter sido a forma que o
brasileiro encontrou para reviver o “pacto moderador”, denominação
cunhada pelo cientista político americano Alfred Stepan para descrever
as relações entre civis e militares no Brasil, no período de 1945 a
1964. Nos momentos de maior tensão, os militares tinham a função
conservadora de manutenção do sistema. A atuar como árbitro ou juiz,
nunca como governante, sua missão se restringia a depor chefes do
executivo considerados inaptos para o cargo e devolvê-lo aos civis.
Em
1964, a rutura do compromisso não escrito e a implantação da ditadura
na sequência, no geral, foi uma experiência negativa para a instituição
das Forças Armadas do Brasil. Ainda que Bolsonaro desejasse, parece
impossível a reconstrução do “pacto moderador” visando um golpe de
Estado. Responsavelmente, tanto a sociedade como os militares não
aprovam tamanho disparate.
Naquela
época, o autoritarismo funcionou como o mal necessário para impedir o
caos. Remédio amargo, a rutura institucional pelos militares gozava de
aprovação de parcela considerável da sociedade. Hoje, não há hipótese de
a história se repetir, nem como farsa nem como tragédia. É preciso
muito esforço de imaginação para acreditar que a democracia brasileira
esteja à beira do colapso pelas mãos de Bolsonaro, embora não sejam
poucos aqueles que se comportem como carpideiras em busca de um cadáver
para derramar o pranto à espera de faturar politicamente.
A
democracia não deve ser considerada uma conquista definitiva, sobretudo
no Brasil em que as instituições tendem a refletir as divisões radicais
da sua sociedade política. Num contexto mundial, em que o autoritarismo
atrai cada vez mais a atenção dos governantes, mostrando-se capaz de
rivalizar com a democracia liberal como provedor do desenvolvimento, o
Brasil deve preocupar-se em manter firmes os pilares de suas
instituições democráticas. Muitos são os que defendem a democracia no
país, mas, paradoxalmente, a democracia brasileira parece necessitar de
alguém que a defenda daqueles que se dizem seus defensores.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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