O tricô bem feitinho é uma das terapias recomendadas pelo milagroso programa de recuperação dos Militantes Anônimos. A crônica de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta:
“Que
bobagem, hein, Marialda?”, disse Joanilda à amiga. As duas estavam
sentadas na sacada de um predinho semigentrificado ali na 13 de Maio e
olhavam com alguma nostalgia tanto para o horizonte quanto para o
passado. Ex-feministas, ex-petistas, ex-antifas, ex-ecoativistas e
ex-estudantes de jornalismo, hoje elas ganham a vida vendendo coxinhas
com muita carne (mas muita carne mesmo) e produtos de higiene retrôs, à
base de chumbo.
Separadas
desde O Grande Acontecimento, as duas se reencontraram por acaso numa
reunião dos Militantes Anônimos. Ao se reconhecerem, soltaram gritinhos
femininos, elogiaram a roupa e a maquiagem uma da outra, contaram dos
maridos, dos filhos e até dos romances da Danielle Steel que leram.
Joanilda estava livre do vício em ideias progressistas há, o quê?, uns
cinco anos. Marialda estava sóbria há menos tempo.
Desde
então, elas se reúnem uma vez por semana no apartamento da Joanilda,
para tricotar e trocar receitas de bolos de chocolate, digo, nega
maluca. Naquele dia em especial, porém, não sei o que deu na Marialda,
só sei que ela, como se fosse uma traficante de ideais vencidos, abriu a
porteira do passado negro que as duas compartilhavam.
Você acreditava mesmo?
E
se puseram a falar daquele tempo longínquo em que se engajaram na
Resistência “a tudo isso que está aí”. Joanilda, coitada, chegou a
montar acampamento em frente à sede da Polícia Federal de Curitiba, de
onde gritava “bom dia, meu presidente!” para o ex-presidiário-mor. Foi
ali, aliás, enquanto comprava uma camiseta do PCO, que ela conheceu
Marialda, então pertencente à Liga das Camponesas Comunistas Feministas
Veganas (Licacofeve).
“Mas,
fala a verdade. Você acreditava mesmo que o Lula ia resolver alguma
coisa?”, perguntou uma à outra, não importa qual. As duas caíram na
gargalhada antes que Marialda dissesse, a título de autoperdão: “Naquela
época, valia tudo para destruir a pequena burguesia e o Inominável”. E
continuou fazendo seu tricozinho discreto, como uma Penélope sem um
Odisseu para chamar de Seu Odisseu. “Tão bom aquele tempo! Mas perigoso
também. O fascismo. Toc, toc, toc”, disse, batendo na madeira.
As
duas ficaram ali, cheias de aiais, buscando na memória algum episódio
de perseguição e violência para se vangloriar. Mas nada lhes veio à
mente. Marialda pensou em inventar alguma história de truculentos
brucutus direitistas arrancando as páginas de seu Zizek novinho em
folha, mas achou melhor não. Joanilda ficou na dela. Até que não
aguentou e confessou: “Eu votei no Bolsonaro!”.
Marialda
deixou cair as agulhas e o novelo de lã lá embaixo. Achou que ia ter
uma síncope. Naquele momento, ela sentiu toda a abstinência da
militância e só a muito custo não saiu correndo pela rua desesperada por
um Marx puro e do bom. Mas aí se lembrou e, sussurrando, disse à amiga
que também tinha votado “naquele lá”, mesmo servindo bolo politicamente
consciente naquela eleição.
E
as duas riram como se tivesse sido ontem que saíram às janelas para
batucar panelas e gritar “genocida!” para o presidente que tinham
ajudado a eleger só para ver o circo pegar fogo. “Sem falar que Haddad
não dava, né?”, insistiu Joanilda, sentindo-se 13 toneladas mais leve.
“Nem Marina. Nem Ciro. Nem...”
Ah, se a gente soubesse...
Como
a tarde era uma criança, o papo se prolongou para além do cafezinho.
Uma hora Joanilda pediu licença, foi lá no quartinho dos fundos e pegou
um jornal todo amarelado, do tempo em que ainda havia jornais. “Lembra
disso?”, perguntou ela debilmente à amiga que lembrava, claro, pois
estava ao lado dela na foto.
“A
gente tinha ido para a rua pedir mais direitos”, disse ela, sussurrando
e enrubescendo e se encolhendo de vergonha na cadeira. “A gente sonhava
em usar a pandemia para acabar com o capitalismo fascista assassino e
predatório. Que bobagem, hein, Joanilda?”, disse Marialda, concluindo
com um “ah, se a gente soubesse” seguido por quilométricas reticências.
E,
como estavam naquele momento mágico de confissões espontâneas, Joanilda
resolveu ir mais longe. “Nunca te perguntei isso antes. Mas você achava
mesmo que o comunismo ia dar certo?”. E ficou esperando a resposta da
amiga com o coração na boca. “Sou maluca, mas não burra”, respondeu
finalmente Marialda, fazendo o sinal-da-cruz, no que foi acompanhada por
Joanilda.
Teve aquela vez
O
papo continuou com “teve aquela vez” e “teve aquela outra vez”.
Joanilda e Marialda passearam pelos ruidosos anos 2020 lembrando
ruidosamente uma para a outra de suas ruidosas rebeldias juvenis. Até
que veio o inevitável “mas daí né” e ambas mergulharam nas águas gélidas
da realidade. As duas tinham mais de 30 anos quando declararam o
imposto de renda pela primeira vez e, pela primeira vez, se sentiram
adultas.
O
que aconteceu em seguida foi o que sempre acontece aos que cumprem o
programa de desintoxicação e sobriedade dos Militantes Anônimos. No
começo, Joanilda e Marialda tiveram muita dificuldade para se verem como
indivíduos dotados de razão e liberdade. Numa de suas recaídas,
Joanilda quase se submeteu a uma mastectomia porque acordou “se sentindo
assim meio homem”.
Mas
seguiram em frente, aprenderam a admirar o céu e as árvores, a ler
Adélia Prado, a olhar para um quadro rococó e se apaixonar pela luz.
Quando deram por si, eram pessoas, seres humanos de novo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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