BLOG ORLANDO TAMBOSI
Os
fatos mudam. E quando mudam, criam novos contextos amparados por
novíssimos parâmetros. A velocidade das mudanças, por sua vez, confunde
os atores, na medida em que as reações determinam, ao menos
parcialmente, o sucesso ou o fracasso que cada um colherá.
O
andar dos últimos acontecimentos sinaliza para uma destas mudanças. A
recomposição da base do atual presidente, e a exigência para que
generais que estão em seu governo manifestem publicamente concordância
política, se associaram à tentativa de criação de um novo estatuto das
polícias estaduais em nome do esvaziamento do poder dos governadores. A
incitação à baixa oficialidade, seja pelos discursos efusivos em apoio
aos dissidentes, seja pela associação irresponsável entre a
insubordinação e a oposição política aos governadores dos estados,
complementa o quadro.
Estes
movimentos foram suficientes para suscitar, sem grandes surpresas, as
lembranças dos anos 60. Vejo aqui e acolá algumas manifestações
sinalizando para uma reescrita do golpe de 1964. Tais manifestações
apontam para a coincidência entre as datas, como se nos avisassem que no
primeiro dia de abril de 2022 o país seria novamente tomado pela
intervenção golpista — que enxergam como revolucionária — assim como foi
em 1964. Só que desta vez por um autogolpe dado por Bolsonaro.
Mas
autogolpe lembra outra passagem muita cara da História brasileira. Em
03 de novembro de 1891, no mês que a República completaria dois anos de
sua instalação, Deodoro da Fonseca, militar responsável pela queda de
Pedro II e primeiro presidente do país, fechou o Congresso Nacional em
um autogolpe que daria a ele amplos poderes e, no limite, instalaria uma
ditadura militar no novo regime que então engatinhava.
Nos
anos imediatamente anteriores, a escalada da crise monárquica
impulsionou uma convergência entre interesses ocasionais, possibilitando
a aproximação entre certa elite descontente com os rumos do governo,
setores urbanos e parcelas das Forças Armadas, notadamente do Exército.
Contudo, esta convergência se esfacelava conforme as primeiras
acomodações ocorriam, transformando a jovem República em uma
bomba-relógio.
Três
foram os motivos. O primeiro era a situação econômica, assolada pelo
desastre da política implantada pelo ministro da Fazenda do governo de
Deodoro, Rui Barbosa. Os resultados foram o descontrole nas contas
públicas, no sistema de preços e na credibilidade externa.
O
segundo era a hostilidade entre o Congresso e o Poder Executivo,
principalmente em relação à organização do sistema federalista. O
desrespeito manifestado por Deodoro à autonomia dos estados contrastava
com o apoio ao federalismo que o seu principal defensor, o PRP (Partido
Republicano Paulista), angariava no Congresso. Este contraste,
radicalizado na experiência sul rio-grandense, polarizou a opção
centralista de Deodoro ante o federalismo que acabara de ser incluído na
Constituição. Esta radicalização — e a dificuldade de Deodoro em
enfrentar os conflitos no sul do país — transbordava para um terceiro
problema, relacionado a pouca unidade entre as lideranças militares que
participaram do golpe de 1889. Mal arranjadas entre um positivismo
difuso e uma ética centralizadora, algumas lideranças militares já
manifestavam seu descontentamento com o andamento do governo de Deodoro.
E
esta foi a mudança. Poucos meses após a promulgação da Carta de 1891 e
de ser vencedor da eleição indireta que inaugurou seu governo
constitucional, Deodoro rompeu com as principais lideranças políticas,
principalmente com aquelas ligadas a influente elite paulista. E adotou
uma posição golpista, confirmada em 3 de novembro pelo fechamento do
Congresso. Contudo, apenas exatos 20 dias depois, o Congresso não só
voltaria a funcionar, como o próprio presidente Deodoro havia sido
derrubado, sacrificado pela persistente dificuldade de enfrentar a
violenta disputa no Brasil meridional, seu adoecimento, e
principalmente, a ascensão do vice-presidente, o também marechal
Floriano Peixoto, à presidência da República.
E
foi esta cunha entre as lideranças militares que se revelou como a
oportunidade para a consolidação da República, a manutenção da
Constituição e a retomada do trabalho do Congresso. E também como a
senha para uma aliança inesperada entre partes destas lideranças
militares e outras civis. Até porque Floriano Peixoto também carregava
em sua atuação política elementos bonapartistas, personalistas e
radicais, como atestava seu fiel grupo de seguidores, os florianistas.
Contudo, foi sua posição legalista, em muito surpreendente, que
possibilitou um arranjo entre ele, as lideranças civis do Congresso e os
governadores, garantindo a transição entre os regimes. E, claro, sua
decisiva atuação militar nos conflitos armados que tomavam o sul do
país.
Esta
aliança entre o legalismo de Floriano e o Congresso liderado pelo
partido paulista colocou as forças políticas entre as duas espadas.
Traída por Deodoro após ajudá-lo a se consolidar como presidente
constitucional, a elite política, tanto legislativa quanto nos
executivos estaduais, estabeleceu internamente um pacto em favor da
Constituição e do federalismo que poucos anos depois se consolidou na
‘política dos estados’, capitaneada por Campos Sales. Mas também a
colocou quase como refém de Floriano e de seus arroubos autoritários. A
aposta era muito alta, mas conseguiu, no fim, costurar o acordo entre as
lideranças organicamente republicanas e os dissidentes militares. Em
suma, uma aliança entre o Congresso, os governadores e os militares
dissidentes sob a liderança de Floriano foi o tripé sobre o qual se
impediu o autogolpe de Deodoro e, por consequência, se garantiu a
Constituição de 1891.
Em
um amplo exercício histórico, mas com pouco rigor metodológico, a
oportunidade de uma nova aliança entre grupos análogos está dada no
Brasil, que vive esta crise que parece não ter fim. Os fatos mudaram e a
velocidade da resposta dos agentes determinará o sucesso ou fracasso
que veremos em alguns meses.
A
corrida é, segundo alguns seguidores de Bolsonaro, para a preparação do
autogolpe em abril de 2022. Contudo, também é pela aliança entre
lideranças do Congresso, governadores e militares descontentes e
legalistas. E há muitos entre eles, basta ver as incisivas manifestações
de compromisso com a Carta de 1988 feitas pelos militares afastados nos
últimos dias. Se bem aproveitada, como surpreendentemente foi por
Floriano em 1891, esta oportunidade pode adiar a data da decisão de
abril para novembro de 2022, logo após as eleições. Neste caso,
Bolsonaro terá o mesmo fim, triste e melancólico, que teve Deodoro.
Caso
contrário, as chances estarão contra nós. Não é romântico e nem trivial
ter que escolher entre duas espadas, mas necessário. Em outras
palavras, escolher se a data mais importante do ano que vem será 1º de
abril ou 23 de novembro. Esta é a escolha de agora. E como dizem os mais
entusiasmados seguidores de Bolsonaro, tic tac.
Funeral de Floriano, 6 de julho 1895. |
Vinícius Müller é doutor em História Econômica pela USP e professor do Insper.
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