Himmelfarb abraçou para si a ferrenha e pouco louvada missão de destacar na modernidade aqueles parâmetros antigos sem os quais a modernidade nem sequer existiria. Pedro Henrique Alves para a Gazeta do Povo:
Gertrude
Himmellfarb (1922-2019), uma das historiadoras mais competentes e
sofisticadas que os EUA produziram no século XX, é mais uma grande
pensadora conservadora negligenciada pelos brasileiros ao longo de
décadas, ignorada tanto pela academia quanto pela imprensa.
A
história de Himmelfarb começou em 8 de agosto de 1922, data de seu
nascimento em Nova York, mais especificamente no Brooklyn. Filha de Max e
Bertha Himmelfarb ― judeus russos que fugiram das taras quase satânicas
de Lênin e sua trupe comunista ― , aos 17 anos Gertrude entrou para a
Brooklyn College, antro da esquerda trotskista americana, ou, como
define José Luiz Bueno em "Gertrude Himmelfarb: modernidade, iluminismo e
as virtudes sociais", a Harvard dos socialistas. Da Brooklyn College
ela saiu graduada em história, filosofia e economia. Três competências
que fizeram dela uma analista política de primeira ordem.
Foi
lá também, aos 18 anos, que ela conheceu o marido e companheiro de
reflexões e escritos, o icônico pai do neoconservadorismo americano,
Irving Kristol (1920-2009). Kristol conta, em "Neoconservatism: The
Autobiography of an Idea" [Neoconservadorismo: autobiografia de uma
ideia], que se apaixonou à primeira vista pela estudante Himmelfarb e
que logo soube que não demoraria muito para pedi-la em casamento. Ambos
trotskistas convictos, eles assumiram o relacionamento e, de fato, logo
se casaram, em 1942. Apesar de casados, Gertrude afirmou para a revista
New Yorker que não assumiu o nome do marido porque não queria enfrentar a
papelada exigida para isso. O casal teve dois filhos, William Kristol e
Elizabeth Nelson, cinco netos e cinco bisnetos.
Conversão ao "neoconservadorismo"
O
processo de abandono do esquerdismo trotskista começou gradualmente
pela percepção de engano autoconsentido dos adeptos do comunismo
escolar. As teorias comunistas se mostravam cada vez mais falhas quando
colocadas em prática, enquanto a ideologia se tornava cada vez mais dura
e autoritária, e ainda assim os ideólogos e demais entusiastas
insistiam em manter um discurso de liberdade e altruísmo no qual, de
fato, a liberdade e o indivíduo consciente não eram sequer brevemente
apreciados.
Não
demorou muito para que, aliados a uma comunidade crescente de judeus
conservadores em Nova York, tanto Himmelfarb como Kristol abandonassem
as crenças universitárias de um trotskismo americanizado e abraçassem
paulatinamente um conservadorismo intelectualizado que começava dar as
suas caras exatamente naquele instante histórico.
Em
1944 ― para ajudar nesse processo acima exposto e já convictamente
convertidos ao que se convencionou chamar de “neoconservadorismo” ―, o
casal se mudou para Chicago depois que Himmelfarb conseguiu uma bolsa de
estudos na Universidade de Chicago. Lá, a novata e talentosa
historiadora estudou com intelectuais já consagrados do mundo
liberal-conservador, como Hannah Arendt (1906-1975), Leo Strauss
(1899-1973) e Friedrich August von Hayek (1899-1992).
Lord Acton
Foi
também na Universidade de Chicago que ela elaborou seu estudo sobre o
revolucionário francês Maximilien de Robespierre (1758-1794) e, já em
processo de doutoramento, escreveu amplamente sobre a vida e obra de
Lord Acton (1834-1902). Esse trabalho a colocaria em outro patamar de
importância acadêmica nos EUA e no Reino Unido.
Por
causa de seu trabalho sobre Lord Acton, Gertrude ganhou uma bolsa para
pesquisa em Cambridge e, depois que seu marido conseguiu dar baixa em
sua participação no exército americano, em 1946, partiram para a
Inglaterra, onde permaneceram durante quatro anos. Na terra da rainha,
ela ampliou consideravelmente sua pesquisa e editou os ensaios de Acton.
Ao voltar para Chicago, em 1950, ela defendeu sua tese sobre Lord
Acton, intitulada "Lord Acton: A Study in Conscience and Politics" [Lord
Acton: um estudo sobre consciência e política].
O
trabalho marcaria profundamente a sua carreira intelectual. A tese
proposta trata da correspondência entre as virtudes sociais e a
liberdade consciente dos indivíduos como esteios da ordem comunitária do
Ocidente. Tal percepção, como veremos adiante, seria o grande farol e
trilho intelectual de Gertrude até o fim da sua vida.
Homenagens
Apesar
de suas pesquisas cada vez mais profundas e de excelência, de 1950 a
1965 quase não se vê atuação alguma da historiadora no ramo acadêmico.
Segundo o já citado José Luiz Bueno, a historiadora se descrevia como
“uma mãe que trabalhava e que, enquanto mantinha interesse pela pesquisa
acadêmica, dividia o tempo com as tarefas e a responsabilidade de
cuidar dos dois filhos do casal”. O que pode explicar esse intervalo de
15 anos de uma atuação mais significativa da historiadora na
universidade e revistas especializadas.
Mas
isso mudou em 1965, quando ela se entrou para o quadro de professores
da Brooklyn College ― universidade que a projetou. Em 1978, lecionou
história na City University of New York até se aposentar, em 1988.
Recebeu inúmeros títulos e homenagens pelos serviços prestados ao estudo
de história nos EUA e no Reino Unido, entre eles: membro da Academia de
Artes e Ciências dos Estados Unidos, conselheira da Scholars of the
Library of Congress, de 1984 a 2008, e, em 2004, recebeu das mãos do
então presidente George W. Bush a National Humanities Medal. Essa última
é um dos maiores prêmios no ramo dos estudos humanísticos nos EUA.
Em
30 de dezembro de 2019, aos 97 anos de idade, durante a madrugada,
Gertrude Himmelfarb faleceu vítima de “insuficiência cardíaca”. O
intelectual português João Carlos Espada, amigo pessoal da família
Kristol-Himmelfarb, assim descreveu o evento no jornal Observador: "Na
passada terça-feira, 31 de dezembro, recebi às 14h06 um e-mail de
William Kristol [filho de Gertrude] intitulado “sad news”. Abri com
hesitação, e os meus receios foram infelizmente confirmados. Bill
informava os amigos de que sua mãe, Gertrude Himmelfarb, morrera na
noite anterior, aos 97 anos, em casa e pacificamente".
Com
dezesseis livros assinados como seus, mais oito como editora e/ou
organizadora, além de vários ensaios e artigos, Himmelfarb se inclui
naquele conjunto de intelectuais que ― ao contrário de seu marido,
combativo e apaixonado defensor das causas políticas conservadoras ―
convenceu e colocou seu nome na história americana devido à sua
capacidade de apresentar as razões profundas de suas teses, de defender
de maneira elegante e sofisticada seus pontos de vista.
Reabilitação da Era Vitoriana
Após
estudar Lord Acton, a historiadora encarou o conceito de virtude social
(princípios e valores práticos de origem judaico-cristão) como o arrimo
que cimenta a coesão civilizacional que tanto nos diferenciou das
demais sociedades. Ao estudar a Era Vitoriana, Himmelfarb encontrou no
conceito de dever o combustível dos avanços sociais que depois iriam
aflorar principalmente na Inglaterra. Himmelfarb destaca que a tão
denegrida imagem da Era Vitoriana é fruto de uma propaganda ideológica
dos iluministas franceses que, sem demora, foi absorvida pelos
intelectuais e revolucionários de cepa progressista no mundo todo. Para
ela, a Inglaterra vitoriana se destaca socialmente pela redução da
bastardia, analfabetismo, criminalidade, fome, pobreza, etc., tudo isso
por meio de um processo moral, e não político.
Para
a historiadora americana, a Era Vitoriana, por meio da assimilação das
virtudes cristãs e tradicionais, aliada ao sentido de dever individual,
criou uma espécie de mão social invisível que tinha o poder de minorar
os problemas sociais enquanto elevava naturalmente a condição de vida
daqueles que viviam aquela era. Himmelfarb entendia que o Estado
assistencialista e os seus princípios de bem social humanista que hoje
ostentamos como o ponto alto do século XX e XXI eram algo natural,
decentralizado e extremamente comum no cotidiano inglês e americano
(após este último ter sido efetivamente fundado e ter importado as
tradições e costumes do velho continente). O sentido de dever e a
assimilação das virtudes como imperativo de vida dos indivíduos formavam
um imaginário social eficaz, estimulando nos indivíduos a autonomia e a
soberania sobre seu próprio destino, em vez de depositarem as suas
sortes e subsistências em programas de assistência do Estado.
O
paradoxo histórico-político que Himmelfarb expunha em seus escritos, e
que talvez a contemporaneidade progressista ainda não esteja pronta para
assimilar, era que quanto mais a força moral da sociedade vitoriana
apontava para uma autonomia individual e responsabilização pessoal sobre
o seu próprio destino, mais os indivíduos naturalmente se tornavam
participativos e empáticos nas causas públicas, minorando naturalmente
aqueles problemas sociais que hoje o centralismo político tenta resolver
através de engenhocas filosóficas e ajustes políticos autoritários.
Gertrude
Himmelfarb compreendia que o brio que as virtudes sociais vitorianas
colocavam no caráter do homem impedia que ele encontrasse no Estado a
sua primeira parada de ajuda ― o que é o novo normal dos dias atuais ―, e
sim a última via, quando todas as tentativas de autossustento foram
esgotadas. O indivíduo, quando resiliente e forjado na dificuldade da
autonomia, espontaneamente seguirá um caminho de independência e
maturidade psicológica e social, encontrando na sociedade um elo
cultural que unirá naturalmente a comunidade aos seus princípios, e não
uma maca moral no qual nos deitamos voluntariamente para vegetar e/ou
parasitar.
O
sentido de virtude e dever é, para Gertrude, é a própria ligação entre a
cultura e o indivíduo, e, quando desvinculamos um do outro, acabamos ou
criando um conjunto de normas coercitivas, caducas e autoritárias,
estranhas aos homens da Pólis, ou uma anarquia de sanatório, onde cada
cabeça é a própria ética encarnada. Em ambos os casos, temos a morte da
vida social. Himmelfarb antes entende que o indivíduo e sua cultura
devem estar intimamente conectados, tal como um filho a seu pai e,
quando um ou outro indispensavelmente tem que passar pelo enfrentamento
da contestação, deve adotar uma postura madura para avançar sem precisar
destruir o passado, ou reafirmar as raízes sem que isso signifique
estacionar no tempo.
Valores tradicionais
Talvez
um filósofo que entendeu bem aonde Gertrude queria chegar ― apesar de
não constar que ambos se conheciam ― foi o padre Battista Mondin. No
livro "Os valores fundamentais", ele afirma:
"Há
muitas pessoas que pensam que é possível superar facilmente essa crise
trocando o painel tradicional dos valores (os valores morais,
religiosos, espirituais, transcendentais) por um novo painel feito
simplesmente de valores históricos, econômicos, políticos, culturais. A
meu ver, isso é um enorme erro, gravíssimo e colossal que não leva em
conta uma verdade simples: assim como o homem tem necessidade de
determinadas coisas para a vida biológica e de certos valores
espirituais e absolutos para a vida espiritual, também a sociedade, pelo
seu próprio ser, tem necessidade da cultura e esta, para poder
realmente atuar como forma unificante da sociedade, não pode se limitar
ao cultivo de valores econômicos, materiais e instrumentais. Ela deve,
também e sobretudo, atender à promoção e à assimilação de valores
absolutos, transcendentais e perenes".
O
homem contemporâneo, quando decide abandonar os valores que foram bons o
suficiente para transportá-lo até aqui, adota abertamente uma atitude
desconexa e irracional e, em última instância, completamente incivil e
egoísta. Não à toa, aponta Himmelfarb, assistimos estupefatos ao avanço
da cultura relativista, do identitarismo e do progressismo que resolveu
abandonar qualquer arrimo lógico e sustentação ética em troca de uma
engenharia social tosca e sem fundamento. Aqueles que conseguem
vislumbrar esse processo de morte dos valores perenes no Ocidente não se
sentem completamente desavisados ou assustados diante das barbáries
aqui construídas no século XX.
Abdicando
dos valores tradicionais e daqueles princípios perenes, tais como a
justiça, verdade e liberdade, o progressismo tornou a política mais do
que “o melhor ajuste” comunitário para uma vida em comum ordeira e
satisfatória, e sim uma religião política pura e simples. Diz Himmelfarb
em "Os caminhos para a modernidade: os iluminismos britânico, francês e
americano":
"Mas
a ideia de uma religião civil, com todas solenidades, e as censuras
ligadas a ela, era tudo menos inocente, pois era o meio para a
realização do propósito do novo regime, como Rousseau o entendia, que
não era nada menos que a reformulação radical não apenas da sociedade,
mas da própria humanidade".
Nas
palavras de José Luiz Bueno, nessa repulsa pela religião civil,
Himmelfarb se une a Michael Oakeshott (1901-1990): “A possibilidade de a
política assumir o papel de produtora de redenção e da moral era uma
ideia que, para Oakeshott, bem como para Himmelfarb, configurava-se,
simplesmente, como repulsiva”.
A
historiadora via no abandono da imaginação moral o principal
receituário da decadência da sociedade como um todo, mas via isso com
maior volúpia na universidade, nas humanidades como um todo. Como velha
historiadora, filha do método histórico tradicional, ela combateu
fortemente as tendências neomarxistas de revisionismo do método
investigativo do historiador. Revisionismo que iria da romantização do
discurso, livre adoção e inclusão de aspectos ideológicos dos autores em
biografias e descrições até ao ato de afirmar que a narrativa histórica
não corresponde a fatos, e sim à mera interpretação alheia às
autoritárias e fascistas ideias de verdade e realidade.
Diz
Himmelfarb em "Ao sondar o abismo: pensamentos intempestivos sobre
cultura e sociedade": “A história pós-modernista, poderíamos dizer, não
reconhece nenhum princípio de realidade, somente o princípio do prazer ―
a história ao prazer do historiador”.
Conclusão
Com
certeza Himmelfarb adotou a missão de apresentar aos homens de seu
tempo, e agora para a posteridade com as suas obras já consagradas,
aqueles espólios civilizacionais mantidos e nutridos por meio da
tradição e da prática das virtudes sociais inculcadas no imaginário
moral dos homens. Mas, nas palavras de Douglas Martin, que assina um
texto sobre a vida de Himmelfarb após a sua morte no The New York Times,
Gertrude encontrou na construção cultural do Ocidente a sustentação de
um modelo de vida que todos na contemporaneidade amam e dizem defender,
ao mesmo tempo que o golpeiam a machadadas de invencionices e disparam
sobre ele enxames de ideologias perniciosas.
Segundo
João Carlos Espada, Himmelfarb via um milagre na herança inglesa e,
posteriormente, americana, que tratava da absorção da evolução
científica e das várias revoluções e mudanças que a história nos
apresentou, sem se entregar às convulsões e aos morticínios que as
sociedades progressistas afoitamente realizaram sem pensar duas vezes.
Himmelfarb,
no início de suas investigações, se perguntava quais eram os elementos
de maturidade civilizacional que permitiam evoluir sem destruir o
passado, que permitiam construir prédios e foguetes sem precisar
destruir as catedrais e as carroças. “São as virtudes sociais”,
respondia, por fim, a historiadora judia. Valores esses tão bem
incorporados pelo iluminismo inglês e tão bem apreendidos pelo seu
parceiro americano. Mas, antes de serem ingleses e americanos, eles são a
herança da civilização, que pode e deve ser praticada e incorporada
pela humanidade como um todo. A virtude não é elitista ou setorista, é
antes participativa e gratuita, depende apenas do reconhecimento
individual e de sua prática livre.
Himmelfarb,
por fim, abraçou para si a ferrenha e pouco louvada missão de destacar
na modernidade aqueles parâmetros antigos sem os quais a modernidade
sequer existiria ― pelo menos não como a conhecemos. Gertrude
deliberadamente, tal como uma mãe amorosa e eloquente, esfrega em nossas
faces os erros e os vícios que trazemos para as nossas varandas, o
fedor de morte que carregamos em nossas solas e as pirotecnias
ideológicas de mundinhos perfeitos que usamos para tentar acalmar nossas
culpas e ansiedades.
Himmelfarb
foi a mãe acadêmica que contava a moral da história de nossos avós e
que, por isso, era vista como pouco importante pelos doutos
progressistas que a ombreavam. Ela depreendia as regras das grandes
sociedades para mostrar os defeitos da nossa e, por isso, também não
cultivou grandes louvores entre aqueles que acreditam que o materialismo
histórico e os axiomas sociológicos de nosso tempo são as únicas
verdades relativas, promulgadas ― obviamente ― sob uma autoridade
tolerante e ex-cathedra. Himmelfarb, por fim, foi uma mulher de
convicções antigas, sim, mas a verdade é que ela pouco se importava com
isso, pois ter princípios antigos e estar certa ― parecia dizer a cada
linha de seus escritos ― não é demérito algum; é antes uma virtude.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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